sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013


A fé como encontro com Cristo


                                                                                     Armindo dos Santos Vaz

A razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência «daquilo que vale e permanece sempre». Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro. É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé [1].

A fé viva é um olhar que transfigura as coisas, as pessoas, os acontecimentos, sob o prisma do sentido absoluto da vida, que é Deus. É o acto de colorir a vida com a cor do transcendente, vendo-a à luz de Deus. Para a pessoa de fé, as coisas da vida não são originalmente profanas ou sagradas. São sacramentais: velam e revelam Deus, evocam Deus, podem ser mediadoras de um encontro com Deus. A fé cristã implica uma atitude contemplativa da vida humana e do mundo como lugar onde Deus se dá. É interpretação. Mas é ainda mais do que isso. Sobretudo, é adesão à pessoa de Jesus vendo-o como Filho de Deus. É um encontro com ele, seja em que grau for.
Os cristãos, na Europa como em Macau, educados na fé, com algum conhecimento da Bíblia e considerando Jesus como importante para ir ao encontro de Deus, deveriam desejar encontrá-lo. Que deve significar Jesus para nós?
Idealmente, a resposta seria dada pelos místicos, aqueles que fizeram a experiência da presença de Jesus neles. De facto, saber é experiência: o resto é só informação. Nesta reflexão – que não é senão um balbuciar – sobre a fé enquanto encontro com Cristo, daremos frequentemente a palavra aos experientes, aos que o viveram, pois esse encontro é mais do que falar bem de Deus ou fazer propostas pastoralmente interessantes para O conhecer. Esta reflexão é pelo menos o sincero desejo desse encontro com Jesus.


1.            A fé como encontro de Deus com o ser humano na Bíblia

Segundo o testemunho das Escrituras bíblicas, a estrutura básica da revelação de Deus é a do encontro pessoal: a do falar e do escutar, do comunicar e do responder, do dar e do receber, do «estar com» e do gozo da comunhão. A história da revelação bíblica – como salienta o concílio Vaticano II na Dei Verbum (nº 2-6) – deixa transparecer a iniciativa de Deus que vem ao encontro do ser humano, para se lhe comunicar, para lhe mostrar a vontade de o amar e salvar. E faz com ele uma aliança. A resposta do ser humano ao Deus que fala é dada por meio da fé [2]. É a abertura do seu espírito ao Espírito de Deus, para acolher o seu efectivo amor (Rm 5,5). O leitor da Bíblia sente-se interpelado e convidado para um encontro, marcado para o quotidiano, em que se lhe revela «um Deus de rosto humano» para o tornar «um homem de rosto divino». Sente-se chamado ao novo. Enquanto aberto a Deus, sente-se acolhido e acolhedor. A Bíblia não fala de Deus em si nem do Homem em si: fala de Deus em relação ao Homem e do Homem em relação a Deus. O Homem bíblico entende-se a si próprio a partir do encontro essencial com Deus (tido ou almejado). Israel e a Igreja apostólica não têm história se não a partir da fé. Paradoxalmente, tudo o que o Homem bíblico tem de soberana autonomia consiste em depender de Deus: precisa de Deus para ser humano completo: define-se em relação a Deus, como imagem de Deus.
Da perspectiva do Novo Testamento, a história do Antigo prepara o ser humano para o encontro com o Deus que se define totalmente no ser humano, Jesus. De resto, os textos bíblicos não conhecem um Deus que prescinda do ser humano. Deus mostra ser Deus, precisamente no seu encontro com o ser humano, com Moisés (Ex 3-4). E então fala-lhe do seu encontro com “os pais”. Não é o Deus de um santuário. É o Deus da pessoa e com a pessoa: é “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob” [3]. A Moisés revelou-se também como o Deus para a pessoa. Finalmente revelou-se como o Deus na pessoa, na pessoa de Jesus de Nazaré. Nele, Deus veio definitivamente ao encontro dos humanos e ficou envolvido na história deles, preocupado pelo destino deles. Fez história com eles, tornou-se o centro da história deles [4]. Em Jesus, ser humano torna-se parte do ser de Deus, que, mesmo assim, mantém sempre a transcendência relativamente ao humano. Nesse encontro de Deus incarnado no humano [em Deus humanado, como dizemos na tradição oral], a negação da importância do ser humano para Deus é tão inconcebível como a negação da importância de Deus para o Homem bíblico.
Essa importância recíproca emerge densamente nos sucessivos encontros do Jesus histórico com as mais diversas pessoas, relatados nos evangelhos. João tem uma visão particular destes encontros, com horas marcadas.
O primeiro, com futuros discípulos, “à hora décima”, era um convite a fazer opções fundamentais na vida, a seguir o Mestre, a valorizar os atalhos do passado e a lançar-se nas auto-estradas do futuro (Jo 1,35-51). Se, no AT, para encontrar Deus havia que procurá-lo, agora Ele é encontrado quando os humanos procuram o Messias: “Jesus disse-lhes: Que procurais? Eles responderam-lhe: Mestre, onde vives?... André disse ao seu irmão Simão: Encontrámos (heurékamen) o Messias, que quer dizer Cristo”. Com Jesus desapareceu a distância entre Deus e ser humano. Para conhecê-lo, basta conhecer Jesus: para encontrá-lo, basta encontrar Jesus, o heureka do sentido da vida.
O encontro “de noite“ com Nicodemos é um desafio a sair para a luz e a dar verdade à vida: “Quem pratica a verdade aproxima-se da luz” (Jo 3,21).
O encontro “à hora sexta” com a samaritana é um convite a acolher o dom de Deus – o próprio Jesus – que mata a sede e transforma a vida: “Se conhecesses o dom de Deus…, ele te daria água viva” (Jo 4,10).
O encontro com o funcionário real “à hora sétima” “pôs o homem a caminho, fiado na palavra que Jesus lhe disse”: “põe-te a caminho, que o teu filho vive” [5].
No encontro, durante uma festa judaica, com o paralítico da piscina dos cinco pórticos – os cinco livros da Lei de Moisés – é a palavra de Jesus que o cura (“Jesus disse-lhe: levanta-te e anda”): de um desgraçado fez um homem.   O que a Lei de Moisés não podia fazer fê-lo a palavra de Jesus (Jo 5,1-18).
O encontro de Jesus com o cego de nascença num “sábado” faz passar o homem das trevas para a luz, para o sentido de existir (Jo 9,1-41).
O encontro “de madrugadacom Maria Madalena depois da morte faz dela mensageira de Jesus vivo (“vi o Senhor”) que continua a encontrar-se com todos os humanos que o queiram ver pela fé (Jo 20,11-18).
O encontro com os discípulos e com Tomé “ao entardecer” é a certificação de que o Cristo sentido pela sua fé pascal é o mesmo que o Jesus da história: é o convite à confissão da fé em Jesus como ponto de encontro com Deus: “meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,19-29).
Todos estes encontros estão assinalados no seu respectivo tempo, que não é um tempo cronológico, o tempo chronos que nos deteriora, nos envelhece e nos mata, mas é o tempo marcante e salvífico, o tempo kairós de Jesus, que lança para o futuro pelos caminhos da bondade.
Os evangelhos mostram que os pecadores aspiravam a “estar à mesa com ele”, a “comer com” ele (Mc 2,15-16). A sua felicidade estava em encontrar-se com ele e em sentir-se aceites por ele (Lc 15,2). Os doentes encontravam nele o sentido radical para a sua existência. E lá estava sempre a fé a banhar esses encontros. Quando ela faltava, descambavam em recontros ou desencontros, como no caso dos dirigentes político-religiosos judaicos.

2.            A fé enquanto encontro com Jesus Cristo

Porque os encontros com o Jesus histórico do evangelho exigiam fé, desde então a fé cristã supõe sempre fazer a experiência de um encontro pessoal com ele, adesão de uma vida a ele, ressuscitado. A fé leva ao encontro com Jesus e o encontro com ele redunda em fé mais firme e mais comprometida. É “um caminho que dura a vida inteira” [6].
De facto, quando os evangelhos nos brindam propostas de fé em Jesus ressuscitado, meditações sobre a sua paixão, os seus milagres e a sua bondade, não exortam simplesmente ao serviço do amor, segundo o seu exemplo. Oferecem algo mais importante. Oferecem a contemplação de Jesus como aquele em quem Deus se comunicou aos humanos, como a sua suprema e definitiva Palavra, como rosto visível do Deus invisível, como o ponto de encontro entre Deus e nós. Ele é o dom do “Deus para nós”. Nele, o importante enquanto vem de Deus é ser dom, ser “Tudo” para nós. O importante de nossa parte é o “nada”, a abertura de espaço para o dom. O dom é “o Tudo” que dá sentido ao “nada”: é a fé em Jesus (agora, ressuscitado) como presença de Deus e como possibilidade de encontro com Ele: “Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra – e não tem outra – disse-nos tudo junto e nada mais tem a revelar” – diz S. João da Cruz [7]. Por isso – continua o místico carmelita –“não me tirarás, Deus meu, o que um dia me deste no teu único Filho, Jesus Cristo, no qual me deste tudo quanto quero” [8]. O dom não é simplesmente o que Jesus disse, mas o que ele é: a Palavra que desvela Deus ao ser dada e comunicada, o Cristo vivo para sempre. Enquanto Filho, ele é que nos dá a experiência de Deus. A quem quer que procure o encontro com Deus Este replicará com palavras de S. João da Cruz: “Se já te disse tudo na minha Palavra, que é o meu Filho – e não tenho outra – que mais te posso Eu responder agora ou revelar. Põe os olhos só nele, porque nele tudo disse e revelei; e acharás ainda mais do que pedes e desejas… Ele é toda a minha locução e resposta, toda a minha visão e toda a minha revelação… Tudo lhe confiei a ele. Escuta-o, porque Eu já não tenho mais fé para revelar, nem mais nada a manifestar” [9].
Sendo Jesus o ‘lugar’ do nosso encontro com Deus, é simultaneamente o lugar do encontro de Deus connosco. Foi a meta de um compromisso de Deus. Comprometeu-se com os patriarcas bíblicos fazendo-lhes promessas, comprometeu-se com o povo de Israel no encontro do Sinai fazendo com ele uma aliança-compromisso. Comprometeu-se com o seu povo por meio de “uma nova aliança”: “Porei a minha lei no seu interior, escrevê-la-ei nos seus corações; Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jer 31,31-34). Foi a fidelidade a esse compromisso, bem visto pela fé, que o levou a incarnar no Filho.
Nesse encontro por meio da incarnação o que sobressai é o «estar com», como canta o místico João da Cruz na Romança sobre a Incarnação:
E no princípio morava
O Verbo, e em Deus vivia,
No qual a felicidade
Infinita possuía…
Porque em tudo semelhante
Ele a eles se faria
E viria ter com eles
E com eles moraria.
E que Deus seria homem
E que o homem Deus seria
E viveria com eles,
Comeria e beberia;
Com eles constantemente
Ele mesmo ficaria [10].
Esse encontro de Deus com o ser humano tem um nome: Jesus. Mas tem a ver connosco: nós somos uma parte dele. Se o encontro de uma pessoa com outra está cheio de possibilidades, o encontro de Deus connosco na Incarnação é dinâmico e só pode ter consequências e um impacto único em nós: “que Deus seria homem / e que o homem Deus seria / e viveria com eles, / comeria e beberia…”.
Quando os teólogos da Idade Média se perguntavam pela razão da Incarnação, diziam que o Filho não teria incarnado se não tivesse havido o pecado original. Mas nesta romança de João da Cruz o pecado não tem nenhum lugar. O essencial é o encontro, o «estar com», por dentro [11]: por dentro da história, da grandeza, da fadiga, das limitações e da problemática de ser humano, a dar-lhe a máxima dignidade.
Importa particularmente pôr em destaque a solidariedade de Jesus com a nossa fraqueza. Quando tudo e todos ao nosso redor parecem falhar e nos esquecem, a fé encontra Deus ao lado, a comungar, por meio de Jesus, com o mesmo sofrimento de ser humano. Na dor que nos sacode, nas dificuldades do espírito que nos agitam, esquecidos de todos, procuramos – porque teria de haver – um nicho, um colo, um porto de abrigo. Ele aí está em Jesus, não como modelo ou exemplo mas como sentido de tudo o que acontece ao humano: ele não teve em vida, e menos na morte, onde reclinar a cabeça. Este abandono, sem consolo e alívio na morte – “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” – traduzia a radical comunhão com a suprema limitação do ser humano, na morte. Aquilo que gostaríamos que não sucedesse sucede mesmo. A sensação de aniquilamento é de tal ordem que diríamos: «se eu soubesse que Deus está lá, eu até conseguiria superá-la». A «noite do espírito» deixa-nos a sensação de que Deus não está lá (“…por que me abandonaste?”) e, depois da passagem de Jesus pela morte, ela continua horrenda e muitos continuam a sentir-se sem Deus. Mas agora a fé pode enfrentá-la porque Jesus já santificou esse abismo e já lhe deu o sentido último em Deus. O seu sofrimento de Filho de Deus abriu um refúgio para a dor de todo o ser humano que nele tenha fé. E, como foi para Jesus, a morte pode ser o encontro supremo de Deus com os humanos e dos humanos com Ele, por sua graça. Adopta agora a silhueta de Jesus na cruz, para dar fundamento e força à fé, que nos segreda: na dor não estou só; nela encontro-me com Jesus, ele sabe o que eu sou, passou pelo que eu passo, foi o que eu sou. Deus não é a resposta às perguntas da nossa razão, nem a consolação das nossas dores, nem o ser que sacia os nossos desejos. Por isso, o encontro com Ele, mais do que aliviar os nossos sofrimentos (também os alivia), mais do que saciar os nossos desejos, intensifica-os e dá-lhes a dimensão do transcendente. No Jesus da cruz descobrimos o Deus da luz. No Jesus da dor encontramos o Deus do amor.
O encontro de Deus connosco e nosso com Deus, mediado pela fé, não tem de ser necessariamente sentido: tem de ser real, não teoria. Aqui surge um dilema.
Por um lado, o Deus a encontrar é transcendente, realidade deslumbrante, mistério absoluto. Quando a Sagrada Escritura procura um nome a dar a esse encontro arrebatador, só esboça metáforas, símbolos, como aliança, união, comunhão, matrimónio espiritual, falando de Deus como Esposo e do ser humano como esposa. Nenhuma das imagens, porém, nem todas juntas, declaram a substância do encontro acontecido na fé, precisamente porque o objecto da fé é indizível.
Mas – e este é o outro lado do dilema – o crente que o é a sério sente necessidade do encontro com Deus. Porque a fé bíblica tem em alto conceito a pessoa humana enquanto “formosíssima e acabada imagem de Deus” [12], exige esse encontro, sob pena de que a fé seja vã, ilusória. Nisso consiste o dilema: o crente sente absoluta necessidade de um Deus que é absolutamente transcendente e invisível. O dilema explica alguns desvios que fazemos quando tentamos encher esse vazio com sucedâneos ou quando diminuímos Deus para O conseguirmos agarrar. A vivência de paz interior, o sentido de contacto com o mundo superior: tudo isso é bom. Mas não se identifica com Deus. Saber manter a distância dessas coisas protege-nos de auto-enganos, desgostos ou ilusões desnecessárias. Nem a aridez espiritual é prova da ausência de Deus, nem o sentimento de bem-estar espiritual é prova inequívoca do encontro com Ele. A fé é encontro com Ele às escuras, às apalpadelas. Encontro que é uma experiência de “fé iluminadíssima”, nunca fora da fé. É fé no Deus que se mostrou em Jesus. Não são, portanto, os sentimentos ou as ideias que nos podem dar Deus. Só a fé O dá, mais profunda do que esses sentimentos. Os místicos aconselhariam: “procura-o na fé e no amor”: “Bem fazes em considerar sempre Deus como escondido… e em clamar por Ele dizendo: Onde te escondeste?” [13].
A fé, a esperança e o amor, acessíveis a todos em diferentes níveis, são mais importantes do que outros fenómenos sobrenaturais, revelações, visões, locuções pessoais, pois, “com tudo o que elas são em si, não o podem ajudar mais a amar a Deus do que o menor acto de fé viva e esperança que se faz no desprendimento e na renúncia de todas as coisas” [14]. A fé enquanto encontro é plenitude; os fenómenos sobrenaturais são menos do que plenitude. Dito de outra maneira, essencial é crer no Deus que se revelou na pessoa de Jesus Cristo. Esse é o acontecimento decisivo. Outras experiências são aceitáveis na medida em que nascem dele ou conduzem a ele. Seja no culto, seja na oração pessoal e familiar, seja na acção social a favor dos necessitados, há que cantar a mesma canção: crer, esperar e amar [15]. É o que leva o ser humano ao encontro com Deus em Jesus e nos irmãos.
Portanto, fé com amor na esperança é que resolve o dito dilema. É uma espécie de escada de Jacob que permite o encontro do ser humano com Deus. João da Cruz di-lo limpidamente: “quanta mais fé a alma tem, mais unida está com Deus” [16]; “a salvação da alma é o amor de Deus[17].
Assim, no cristão acontece algo superior a ele: a fé em Jesus Cristo eleva-o à vida de Deus. Desse observatório vê tudo com olhos novos. Porque a fé é experiência de Deus e dom de Deus, transforma o crente. Proporciona o encontro com um Deus que nos transforma por Jesus.

3.            A fé como encontro na oração

Desde que se encontra Deus em Jesus Cristo como pessoa – não como simples ideia ou projecto ou programa – a fé torna inevitável o diálogo com ele, quer a sua presença. Sem o elemento personalizante brindado pela oração cristã enquanto encontro com Deus em Jesus pela força do Espírito de ambos, a missão cristã não passa de tarefa benfeitora ou compromisso filantrópico. A boa oração é dimensão principal da experiência de fé. Põe à prova a qualidade e a capacidade da fé. É encontro privilegiado do homem de fé com o Deus vivo. É uma forma de o ser humano se experimentar em profundidade, se compreender na autenticidade e se exprimir na máxima dignidade. Quem reza com sinceridade projecta a dignidade do ser humano para a categoria mais elevada de quem se vê como «filho de Deus» e se eleva até ao nível de Deus. Enquanto aproxima de Deus, a oração é revelação da dignidade do ser humano e expressão dela. Se o ser humano enquanto «imagem de Deus» se define também pela essencial relação com Deus, então ir ao encontro d’Ele e escutá-lo pela oração é parte constitutiva do ser humano. Daí que seja um valor supremo para a pessoa: faz-nos ser mais nós próprios.
Mas o encontro de Deus na oração é um fenómeno que pouco controlamos. Se ela é autêntica, é busca; e a grande certeza é a da necessidade de Deus. Podemos rezar pelos familiares e amigos, pelos doentes e abandonados, pela união dos cristãos separados. Mas em todos os casos, a necessidade tem de ser sintoma de uma necessidade mais profunda, a da necessidade de Deus, como o mais verdadeiro do ser humano. A oração faz-nos tocar no vivo das nossas radicais limitações, o que dá algum conforto, porque o Jesus que encontramos na oração é aquele que experimentou as situações da nossa pobreza: já esteve lá, pode agora ser solidário connosco e dar sentido à nossa pobreza. Portanto, a necessidade de Deus com a qual a oração convive põe a nu uma grande verdade do nosso ser. Não só sou «capaz de acolher Deus», mas tenho “capacidade infinita” para Deus [18], manifestada especialmente na pessoa de Jesus. Assim também temos necessidade e capacidade de Jesus, o que significa que estamos feitos para grandes coisas. A nossa carência é a nossa dignidade. E quanto mais a sentimos, também pela oração, mais somos o que realmente somos. Quando pedimos a partir de dentro, manifestamos a maturidade do crente em nós, porque mostramos o que realmente somos: seres em necessidade e seres à procura. Esse pedido chama-se oração, mesmo quando não é só de súplica.
O que importa na oração é o encontro de duas liberdades: a infinita de Deus com a finita do ser humano. Importa o encontro: não só pedir coisas, mas pedir Deus e estar com Deus. A oração até é mais tarefa de Deus, desencadeada pelo Espírito do Filho. Está orientada para a presença pessoal.
Esta exigência reduz o perigo do intimismo, que tanto ameaça o orante cristão. A interioridade não é propriamente lugar para o ensimesmamento mas para o encontro com Deus em Jesus Cristo, presente na oração através do seu Espírito. A oração não é coisa de palavras, de técnicas de silêncio, de método, mas de encontro com o Deus vivo: encontra o Cristo vivo dentro de nós. Se não é isto, não é oração: é um arremedo dela.
Quando rezamos em autenticidade, encontrando Deus em amizade, então, apesar da aparente aridez, algo acontece, numa corrente de relação que põe em andamento a mudança nas nossas vidas: no encontro com Deus, Ele torna-nos um pouco mais iguais a Si próprio, ama-nos com o mesmo amor com que Ele se ama.

4.            A fé e o encontro com o próximo

O autêntico encontro com Deus na fé, na sua Palavra e na oração [19] leva ao encontro com os irmãos na vida, põe em movimento a favor do próximo. Da fé, o orante tira/extrai as ressonâncias profundas para a edificação da caridade, sentindo responsabilidade pela comunidade em que vive. Descobrindo a nossa pobreza, a oração situa-nos onde se encontram também as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos. Coloca-nos no coração da dor do mundo. Tem olhos de longo alcance e cura partilhando a dor do irmão. Pela fé conhecemos Deus com o conhecimento do Filho; pela caridade amamos com o amor do Espírito (Rm 5,5). Da fé e da oração brota um dinamismo de vida, que dá ao orante a capacidade de intuir as implicações humanas, sociais, políticas, da acção de Deus no mundo. Quem encontra Deus encontra o amor, isto é, dispõe-se ao serviço do amor. O amor ao Deus que o orante escuta na oração contemplativa é fonte do amor oblativo ao próximo que ele escuta na vida. Os dois são complementares. O dinamismo da fé bíblica e cristã, por cima de uma religião de comportamentos irrepreensíveis e de propostas éticas, busca experiência de Deus como Amor e do ser humano como irmão. E então capta um Deus cujo amor pede acção social a favor do irmão.
Portanto, na estrutura antropológica do encontro com Deus testemunhado na Bíblia está a experiência espiritual de um encontro mediador com o ser humano. Depois da incarnação de Deus no ser humano Jesus de Nazaré, os encontros com Deus passam pelo encontro com o humano irmão, que aparece à fé como um rosto novo de Deus, um rosto desafiador. Basta ter o espírito atento, que pela fé contemplativa sabe identificar vestígios de Deus e ser fiel às suas interpelações. Nos humanos, Deus faz ouvir as suas exigências de renovação, de libertação, de generosidade, de justiça e de dignidade. Esta perspectiva de incarnação e de mediação implica novas formas de buscar a união com Deus, nomeadamente numa espiritualidade singular que compromete as pessoas na solidariedade para com os necessitados, na comunhão com os dispensáveis da sociedade, na ajuda aos que sofrem.
A fé viva faz-se verdade comprometida, amor solidário, justiça comunitária. É uma fé que salva pelo amor que suscita. E dá unidade ao binómio «fé – vida», «oração – trabalho». Porque liga tudo a um Princípio criador, dá unidade às diversas dimensões da vida: à contemplação da natureza como ao compromisso social, à meditação contemplativa como ao trabalho humano.
A pessoa de fé não olha para o necessitado com uma visão sociológica, tentando desmascarar as causas que geram os mecanismos do seu empobrecimento. Supondo tudo isso, olha para o carente como ‘lugar’ de encontro com Jesus Cristo ressuscitado, que se identificou com ele e grita pela reabilitação dele: “estava com fome e destes-me de comer” (Mt 25,35). A fé não usa o pobre para se encontrar com Cristo: ama o pobre amado por Cristo, ama o pobre pelo que ele é e então também ama Cristo. O pobre é ‘sacramento’ do encontro de Deus com o benfeitor e vice-versa. A fé que não desencadeia uma acção a favor do próximo não só não gera amor aos “irmãos mais pequeninos”, “a quem vê”, mas também não gera “amor a Deus, a quem não vê” [20].

Conclusão

A experiência de Deus e o encontro com Ele é tanto mais verdadeira quanto menos pode exprimir-se por palavras. Mas reforçar a função da razão no encontro de fé dá mais força à própria fé.
Hoje, em linha com o espírito do concílio Vaticano II, há cristãos disponíveis para fazerem uma experiência do Deus vivo e amigo, e para responderem na fé com amor a esse Deus que nos transcende, a esse Deus que, vindo ao nosso encontro em Jesus, nos dá a plenitude do ser: “Cristo, que é o Homem novo, precisamente revelando o mistério do Pai e do seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e manifesta-lhe a sua altíssima vocação” [21]. Nessa altura, os místicos terão mais uma vez razão e nós teremos aproveitado do seu encontro com Deus, encontrando-O também nós.


[1] BENTO XVI, Porta fidei, 10.
[2] Cf. BENTO XVI, Verbum Domini, 25.
[3] Mc 12,26; Lc 20,37; Ex 3,6.
[4] “O nosso coração vive inquieto relativamente a Deus, e não pode ser de outro modo…”. Mas “também o coração de Deus vive inquieto relativamente ao homem. Deus espera-nos. Anda à nossa procura. Também ele não descansa enquanto não nos tiver encontrado… Deus vive inquieto connosco, anda à procura de pessoas que se deixem contagiar por esta sua inquietação, pela sua paixão por nós, pessoas que vivem a busca que habita no seu coração e, ao mesmo tempo, se deixam tocar no coração pela busca de Deus a nosso respeito”: BENTO XVI, homilia da Epifania, 6.1.2012.
[5] Jo 4,50. A “estreita ligação entre a Palavra de Deus e a fé realiza-se no encontro com Cristo. De facto, com ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à qual se confia a própria vida”: BENTO XVI, Verbum Domini, 25.
[6] BENTO XVI, Porta fidei, 1.
[7] Subida do Monte Carmelo, II, 22,3. Citamos a partir de Obras completas (Edições Carmelo; Marco de Canaveses 20056).
[8] Ditos de luz e amor, 26.
[9] Subida do Monte Carmelo, II, 22,5.
[10] Romança sobre o evangelho «In principio erat Verbum», 1 e 4: Obras completas (Edições Carmelo; Marco de Canaveses 2005) 49.52.
[11] “A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com ele. E este «estar com ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita”: BENTO XVI, Porta fidei, 10.
[12] S. JOÃO DA CRUZ, Subida do Monte Carmelo, I, 9,1.
[13] S. JOÃO DA CRUZ, Cântico espiritual 1,1.
[14] S. JOÃO DA CRUZ, Subida do Monte Carmelo, III, 8,5.
[15] Cf. I. MATTHEW, El impacto de Dios (Claves; Monte Carmelo; Burgos) 151-236.
[16] Subida do Monte Carmelo, II, 9,1.
[17] S. JOÃO DA CRUZ, Cântico espiritual 11,11.
[18] S. JOÃO DA CRUZ, Subida do Monte Carmelo, II, 17,8. Cf. S. AGOSTINHO, De Trinitate, XIV, 11.
[19] A leitura da palavra da Escritura na fé da Igreja proporciona um encontro com Jesus. A Palavra de Deus, sentida pela fé como inspirada pelo seu Espírito, proporciona um encontro de comunhão espiritual e de reconhecimento de uma Presença transcendente. Exprime um encontro original do crente com o mundo à sua volta, coisa que anda próxima do encontro com o sentido da vida. Desperta para a experiência pessoal do sentido do mundo e de um encontro com Deus. A lectio divina “é verdadeiramente capaz… de gerar o encontro com Cristo, Palavra divina viva” (BENTO XVI, Verbum Domini, 87).
[20] Mt 25,40; 1Jo 3,17-18 e 4,20.
[21] VATICANO II, Gaudium et spes, 22. Todas as potencialidades do ser humano ficaram preenchidas pela incarnação de Deus em Jesus.

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