A fé como encontro com Cristo
Armindo
dos Santos Vaz
A razão do homem traz inscrita em si
mesma a exigência «daquilo que vale e permanece sempre». Esta exigência
constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano,
para caminhar ao encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não
tivesse já vindo ao nosso encontro. É precisamente a este encontro que nos
convida e abre plenamente a fé [1].
A fé viva é um
olhar que transfigura as coisas, as pessoas, os acontecimentos, sob o prisma do
sentido absoluto da vida, que é Deus. É o acto de colorir a vida com a cor do
transcendente, vendo-a à luz de Deus. Para a pessoa de fé, as coisas da vida
não são originalmente profanas ou sagradas. São sacramentais: velam e revelam
Deus, evocam Deus, podem ser mediadoras de um encontro com Deus. A fé cristã
implica uma atitude contemplativa da vida humana e do mundo como lugar onde
Deus se dá. É interpretação. Mas é ainda mais do que isso. Sobretudo, é adesão
à pessoa de Jesus vendo-o como Filho de Deus. É um encontro com ele, seja em
que grau for.
Os cristãos,
na Europa como em Macau, educados na fé, com algum conhecimento da Bíblia e
considerando Jesus como importante para ir ao encontro de Deus, deveriam
desejar encontrá-lo. Que deve significar Jesus para nós?
Idealmente, a
resposta seria dada pelos místicos, aqueles que fizeram a experiência
da presença de Jesus neles. De facto, saber é experiência: o resto é só
informação. Nesta reflexão – que não é senão um balbuciar – sobre a fé enquanto
encontro com Cristo, daremos
frequentemente a palavra aos experientes,
aos que o viveram, pois esse encontro é mais do que falar bem de Deus ou fazer
propostas pastoralmente interessantes para O conhecer. Esta reflexão é pelo
menos o sincero desejo desse encontro com Jesus.
1. A
fé como encontro de Deus com o ser
humano na Bíblia
Segundo o
testemunho das Escrituras bíblicas, a estrutura básica da revelação de Deus é a
do encontro pessoal: a do falar e do escutar, do comunicar e do responder, do
dar e do receber, do «estar com» e do gozo da comunhão. A história da revelação
bíblica – como salienta o concílio Vaticano II na
Dei Verbum (nº 2-6) – deixa
transparecer a iniciativa de Deus que vem ao encontro do ser humano, para se
lhe comunicar, para lhe mostrar a vontade de o amar e salvar. E faz com ele uma
aliança. A resposta do ser humano ao Deus que fala é dada por meio da fé [2]. É a
abertura do seu espírito ao Espírito de Deus, para acolher o seu efectivo amor (Rm
5,5). O leitor da Bíblia sente-se interpelado e convidado para um encontro, marcado para o quotidiano, em
que se lhe revela «um Deus de rosto humano» para o tornar «um homem de rosto divino».
Sente-se chamado ao novo. Enquanto
aberto a Deus, sente-se acolhido e acolhedor. A Bíblia não fala de Deus em si
nem do Homem em si: fala de Deus em relação ao Homem e do Homem em relação a Deus. O
Homem bíblico entende-se a si próprio a partir do encontro essencial com Deus
(tido ou almejado). Israel e a Igreja apostólica não têm história se não a
partir da fé. Paradoxalmente, tudo o que o Homem bíblico tem de soberana autonomia consiste em depender de Deus : precisa de Deus para ser humano
completo: define-se em
relação a Deus , como imagem
de Deus.
Da perspectiva
do Novo Testamento, a história do Antigo prepara o ser humano para o encontro
com o Deus que se define totalmente
no ser humano, Jesus. De resto, os textos bíblicos não conhecem um Deus que
prescinda do ser humano. Deus mostra ser Deus, precisamente no seu encontro com
o ser humano, com Moisés (Ex 3-4). E então fala-lhe do seu encontro com “os
pais”. Não é o Deus de um santuário. É o Deus da pessoa e com a pessoa: é “o
Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob” [3]. A
Moisés revelou-se também como o Deus para a pessoa. Finalmente revelou-se como
o Deus na pessoa, na pessoa de Jesus de Nazaré. Nele, Deus veio definitivamente
ao encontro dos humanos e ficou envolvido na história deles, preocupado pelo
destino deles. Fez história com eles, tornou-se o centro da história deles [4]. Em
Jesus, ser humano torna-se parte do ser de Deus, que, mesmo assim, mantém
sempre a transcendência relativamente ao humano. Nesse encontro de Deus
incarnado no humano [em Deus humanado,
como dizemos na tradição oral], a negação
da importância do ser humano para Deus é tão inconcebível como a negação da
importância de Deus para o Homem bíblico.
Essa
importância recíproca emerge densamente nos sucessivos encontros do Jesus
histórico com as mais diversas pessoas, relatados nos evangelhos. João tem
uma visão particular destes
encontros, com horas marcadas.
O primeiro,
com futuros discípulos, “à hora décima”,
era um convite a fazer opções fundamentais na vida, a seguir o Mestre, a valorizar os atalhos do
passado e a lançar-se nas auto-estradas do futuro (Jo 1,35-51). Se, no AT, para
encontrar Deus havia que procurá-lo, agora Ele é encontrado quando os humanos
procuram o Messias: “Jesus
disse-lhes: Que procurais? Eles responderam-lhe: Mestre, onde vives?... André
disse ao seu irmão Simão: Encontrámos (heurékamen)
o Messias, que quer dizer Cristo”. Com Jesus desapareceu
a distância entre Deus e ser humano. Para conhecê-lo, basta conhecer Jesus:
para encontrá-lo, basta encontrar Jesus, o heureka
do sentido da vida.
O encontro “de noite“ com Nicodemos é um desafio a
sair para a luz e a dar verdade à vida: “Quem pratica a verdade aproxima-se da
luz” (Jo 3,21).
O encontro “à hora sexta” com a samaritana é um
convite a acolher o dom de Deus – o próprio Jesus – que mata a sede e
transforma a vida: “Se conhecesses o dom de Deus…, ele te daria água viva” (Jo
4,10).
O encontro com
o funcionário real “à hora sétima”
“pôs o homem a caminho, fiado na palavra que Jesus lhe disse”: “põe-te a
caminho, que o teu filho vive” [5].
No encontro, durante uma festa judaica, com o
paralítico da piscina dos cinco pórticos – os cinco livros da Lei de Moisés – é
a palavra de Jesus que o cura (“Jesus disse-lhe: levanta-te e anda”): de um
desgraçado fez um homem. O que a Lei de
Moisés não podia fazer fê-lo a palavra de Jesus (Jo 5,1-18).
O encontro de
Jesus com o cego de nascença num “sábado”
faz passar o homem das trevas para a luz, para o sentido de existir (Jo
9,1-41).
O encontro “de madrugada” com Maria Madalena
depois da morte faz dela mensageira de Jesus vivo (“vi o Senhor”) que continua
a encontrar-se com todos os humanos que o queiram ver pela fé (Jo 20,11-18).
O encontro com
os discípulos e com Tomé “ao entardecer”
é a certificação de que o Cristo sentido pela sua fé pascal é o mesmo que o Jesus da história: é o
convite à confissão da fé em Jesus como ponto de encontro com Deus: “meu Senhor
e meu Deus!” (Jo 20,19-29).
Todos estes
encontros estão assinalados no seu respectivo tempo, que não é um tempo cronológico, o tempo chronos que nos deteriora, nos envelhece
e nos mata, mas é o tempo marcante e salvífico, o tempo kairós de Jesus, que lança para o futuro pelos caminhos da bondade.
Os evangelhos
mostram que os pecadores aspiravam a “estar à mesa com ele”, a “comer com” ele
(Mc 2,15-16). A sua felicidade estava em encontrar-se com ele e em sentir-se
aceites por ele (Lc 15,2). Os doentes encontravam nele o sentido radical para a
sua existência. E lá estava sempre a fé a banhar esses encontros. Quando ela
faltava, descambavam em recontros ou desencontros, como no caso dos dirigentes
político-religiosos judaicos.
2. A
fé enquanto encontro com Jesus Cristo
Porque os
encontros com o Jesus histórico do
evangelho exigiam fé, desde então a fé cristã supõe sempre fazer a experiência
de um encontro pessoal com ele, adesão de uma vida a ele, ressuscitado. A fé
leva ao encontro com Jesus e
o encontro com ele redunda em fé mais firme e mais comprometida. É “um caminho
que dura a vida inteira” [6].
De facto,
quando os evangelhos nos brindam propostas de fé em Jesus ressuscitado,
meditações sobre a sua paixão, os seus milagres e a sua bondade, não exortam
simplesmente ao serviço do amor, segundo o seu exemplo. Oferecem algo mais
importante. Oferecem a contemplação de Jesus como aquele em quem Deus se comunicou
aos humanos, como a sua suprema e definitiva Palavra, como rosto visível do
Deus invisível, como o ponto de encontro
entre Deus e nós. Ele é o dom do “Deus para nós”. Nele, o importante enquanto
vem de Deus é ser dom, ser “Tudo”
para nós. O importante de nossa parte é o “nada”, a abertura de espaço para o dom. O dom é “o Tudo” que dá sentido ao
“nada”: é a fé em Jesus (agora, ressuscitado) como presença de Deus e como
possibilidade de encontro com Ele: “Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que
é a sua Palavra – e não tem outra – disse-nos tudo junto e nada mais tem a
revelar” – diz S. João da Cruz [7]. Por
isso – continua o místico carmelita –“não me tirarás, Deus meu, o que um dia me
deste no teu único Filho, Jesus Cristo, no qual me deste tudo quanto quero” [8]. O
dom não é simplesmente o que Jesus disse, mas o que ele é: a Palavra que desvela Deus ao ser dada e comunicada, o Cristo
vivo para sempre. Enquanto Filho, ele é que nos dá a experiência de Deus. A
quem quer que procure o encontro com Deus Este replicará com palavras de S.
João da Cruz: “Se já te disse tudo na minha Palavra, que é o meu Filho – e não
tenho outra – que mais te posso Eu responder agora ou revelar. Põe os olhos só
nele, porque nele tudo disse e revelei; e acharás ainda mais do que pedes e
desejas… Ele é toda a minha locução e resposta, toda a minha visão e toda a
minha revelação… Tudo lhe confiei a ele. Escuta-o, porque Eu já não tenho mais
fé para revelar, nem mais nada a manifestar” [9].
Sendo Jesus o
‘lugar’ do nosso encontro com Deus, é simultaneamente o lugar do encontro de
Deus connosco. Foi a meta de um compromisso de Deus. Comprometeu-se com os
patriarcas bíblicos fazendo-lhes promessas, comprometeu-se com o povo de Israel
no encontro do Sinai fazendo com ele uma aliança-compromisso. Comprometeu-se com o seu
povo por meio de “uma nova aliança”: “Porei a minha lei no seu interior,
escrevê-la-ei nos seus corações; Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo”
(Jer 31,31-34). Foi a fidelidade a esse compromisso, bem visto pela fé, que o
levou a incarnar no Filho.
Nesse encontro
por meio da incarnação o que sobressai é o «estar com», como canta o místico
João da Cruz na Romança sobre a
Incarnação:
E no princípio
morava
No qual a
felicidade
Infinita
possuía…
Porque em tudo
semelhante
Ele a eles se
faria
E viria ter
com eles
E com eles
moraria.
E que Deus
seria homem
E que o homem
Deus seria
E viveria com
eles,
Comeria e
beberia;
Com eles
constantemente
Ele mesmo
ficaria [10].
Esse encontro
de Deus com o ser humano tem um nome: Jesus.
Mas tem a ver connosco: nós somos uma parte dele. Se o encontro de uma pessoa
com outra está cheio de possibilidades, o encontro de Deus connosco na
Incarnação é dinâmico e só pode ter consequências e um impacto único em nós:
“que Deus seria homem / e que o homem Deus seria / e viveria com eles, / comeria
e beberia…”.
Quando os
teólogos da Idade Média se perguntavam pela razão da Incarnação, diziam que o
Filho não teria incarnado se não tivesse havido o pecado original. Mas nesta romança de João da Cruz o pecado não tem
nenhum lugar. O essencial é o encontro, o «estar com», por dentro [11]: por
dentro da história, da grandeza, da fadiga, das limitações e da problemática de
ser humano, a dar-lhe a máxima dignidade.
Importa
particularmente pôr em destaque a solidariedade
de Jesus com a nossa fraqueza. Quando tudo e todos ao nosso
redor parecem falhar e nos esquecem, a fé encontra Deus ao lado, a comungar,
por meio de Jesus, com o mesmo sofrimento de ser humano. Na dor que nos sacode,
nas dificuldades do espírito que nos agitam, esquecidos de todos, procuramos – porque teria de haver – um nicho, um colo, um
porto de abrigo. Ele aí está em Jesus, não como modelo ou exemplo mas como
sentido de tudo o que acontece ao humano: ele não teve em vida, e menos na
morte, onde reclinar a cabeça. Este abandono, sem consolo e alívio na morte –
“meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” – traduzia a radical comunhão com
a suprema limitação do ser humano, na morte. Aquilo que gostaríamos que não
sucedesse sucede mesmo. A sensação de aniquilamento é de tal ordem que
diríamos: «se eu soubesse que Deus está lá, eu até conseguiria superá-la». A
«noite do espírito» deixa-nos a sensação de que Deus não está lá (“…por que me
abandonaste?”) e, depois da passagem de Jesus pela morte, ela continua horrenda
e muitos continuam a sentir-se sem Deus. Mas agora a fé pode enfrentá-la porque
Jesus já santificou esse abismo e já lhe deu o sentido último em Deus. O seu sofrimento de
Filho de Deus abriu um refúgio para a dor de todo o ser humano que nele tenha
fé. E, como foi para Jesus, a morte pode ser o encontro supremo de Deus com os
humanos e dos humanos com Ele, por sua graça. Adopta agora a silhueta de Jesus
na cruz, para dar fundamento e força à fé, que nos segreda: na dor não estou
só; nela encontro-me com
Jesus, ele sabe o que eu sou, passou pelo que eu passo, foi o
que eu sou. Deus não é a resposta às perguntas da nossa razão, nem a consolação
das nossas dores, nem o ser que sacia os nossos desejos. Por isso, o encontro
com Ele, mais do que aliviar os nossos sofrimentos (também os alivia), mais do
que saciar os nossos desejos, intensifica-os e dá-lhes a dimensão do
transcendente. No Jesus da cruz descobrimos o Deus da luz. No Jesus da dor
encontramos o Deus do amor.
O encontro de
Deus connosco e nosso com Deus, mediado pela fé, não tem de ser necessariamente
sentido: tem de ser real, não teoria. Aqui surge um dilema.
Por um lado, o
Deus a encontrar é transcendente, realidade deslumbrante, mistério absoluto.
Quando a Sagrada Escritura procura um nome a dar a esse encontro arrebatador,
só esboça metáforas, símbolos, como aliança, união, comunhão, matrimónio espiritual,
falando de Deus como Esposo e do ser humano como esposa. Nenhuma das imagens,
porém, nem todas juntas, declaram a substância do encontro acontecido na fé,
precisamente porque o objecto da fé é indizível.
Mas – e este é
o outro lado do dilema – o crente que o é a sério sente necessidade do encontro
com Deus. Porque a fé bíblica tem em alto conceito a pessoa humana enquanto
“formosíssima e acabada imagem de Deus” [12], exige
esse encontro, sob pena de que a fé seja vã, ilusória. Nisso consiste o dilema:
o crente sente absoluta necessidade de um Deus que é absolutamente
transcendente e invisível. O dilema explica alguns desvios que fazemos quando
tentamos encher esse vazio com sucedâneos ou quando diminuímos Deus para O
conseguirmos agarrar. A vivência de paz interior, o sentido de contacto com o
mundo superior: tudo isso é bom. Mas não se identifica com Deus. Saber manter a
distância dessas coisas protege-nos de auto-enganos, desgostos ou ilusões
desnecessárias. Nem a aridez espiritual é prova da ausência de Deus, nem o
sentimento de bem-estar espiritual é prova inequívoca do encontro com Ele. A fé
é encontro com Ele às escuras, às apalpadelas. Encontro que é uma experiência
de “fé iluminadíssima”, nunca fora da fé. É fé no Deus que se mostrou em Jesus. Não são,
portanto, os sentimentos ou as ideias que nos podem dar Deus. Só a fé O dá,
mais profunda do que esses sentimentos. Os místicos aconselhariam: “procura-o
na fé e no amor”: “Bem fazes em considerar sempre Deus
como escondido… e em
clamar por Ele dizendo: Onde te escondeste?” [13].
A fé, a
esperança e o amor, acessíveis a todos em diferentes níveis, são mais
importantes do que outros fenómenos sobrenaturais, revelações, visões, locuções
pessoais, pois, “com tudo o que elas são em si, não o podem ajudar mais a amar
a Deus do que o menor acto de fé viva e esperança que se faz no desprendimento
e na renúncia de todas as coisas” [14]. A
fé enquanto encontro é plenitude; os fenómenos sobrenaturais são menos do que
plenitude. Dito de outra maneira, essencial é crer no Deus que se revelou na
pessoa de Jesus Cristo. Esse é o acontecimento decisivo. Outras experiências
são aceitáveis na medida em que nascem dele ou conduzem a ele. Seja no culto,
seja na oração pessoal e familiar, seja na acção social a favor dos necessitados,
há que cantar a mesma canção: crer, esperar e amar [15]. É o
que leva o ser humano ao encontro com Deus em Jesus e nos irmãos.
Portanto, fé
com amor na esperança é que resolve o dito dilema. É uma espécie de escada de
Jacob que permite o encontro do ser humano com Deus. João da Cruz di-lo
limpidamente: “quanta mais fé a alma tem, mais unida está com Deus” [16]; “a
salvação da alma é o amor
de Deus ” [17].
Assim, no
cristão acontece algo superior a ele: a fé em Jesus Cristo eleva-o
à vida de Deus. Desse observatório vê tudo com olhos novos. Porque a fé é
experiência de Deus e dom de Deus, transforma o crente. Proporciona o encontro
com um Deus que nos transforma por Jesus.
3. A
fé como encontro na oração
Desde que se
encontra Deus em Jesus
Cristo como pessoa – não como simples ideia ou projecto ou
programa – a fé torna inevitável o diálogo com ele, quer a sua presença. Sem o
elemento personalizante brindado pela oração cristã enquanto encontro com Deus
em Jesus pela força do Espírito de ambos, a missão cristã não passa de tarefa
benfeitora ou compromisso filantrópico. A boa oração é dimensão principal da
experiência de fé. Põe à prova a qualidade e a capacidade da fé. É encontro
privilegiado do homem de fé com o Deus vivo. É uma forma de o ser humano se
experimentar em profundidade, se compreender na autenticidade e se exprimir na
máxima dignidade. Quem reza com sinceridade projecta a dignidade do ser humano
para a categoria mais elevada de quem se vê como «filho de Deus» e se eleva até
ao nível de Deus. Enquanto aproxima de Deus, a oração é revelação da dignidade
do ser humano e expressão dela. Se o ser humano enquanto «imagem de Deus» se
define também pela essencial relação com Deus, então ir ao encontro d’Ele e
escutá-lo pela oração é parte constitutiva do ser humano. Daí que seja um valor
supremo para a pessoa: faz-nos ser mais nós próprios.
Mas o encontro
de Deus na oração é um fenómeno que pouco controlamos. Se ela é autêntica, é
busca; e a grande certeza é a da necessidade de Deus. Podemos rezar pelos
familiares e amigos, pelos doentes e abandonados, pela união dos cristãos
separados. Mas em todos os casos, a necessidade tem de ser sintoma de uma
necessidade mais profunda, a da necessidade de Deus, como o mais verdadeiro do ser
humano. A oração faz-nos tocar no vivo das nossas radicais limitações, o que dá
algum conforto, porque o
Jesus que encontramos na oração é aquele que experimentou as
situações da nossa pobreza: já esteve lá, pode agora ser solidário connosco e
dar sentido à nossa pobreza. Portanto, a necessidade de Deus com a qual a
oração convive põe a nu uma grande verdade do nosso ser. Não só sou «capaz de
acolher Deus», mas tenho “capacidade infinita” para Deus [18],
manifestada especialmente na pessoa de Jesus. Assim também temos necessidade e
capacidade de Jesus, o que significa que estamos feitos para grandes coisas. A
nossa carência é a nossa dignidade. E quanto mais a sentimos, também pela
oração, mais somos o que realmente somos. Quando pedimos a partir de dentro,
manifestamos a maturidade do crente em nós, porque mostramos o que realmente
somos: seres em necessidade e seres à procura. Esse pedido chama-se oração,
mesmo quando não é só de súplica.
O que importa
na oração é o encontro de duas liberdades: a infinita de Deus com a finita do
ser humano. Importa o encontro: não só pedir coisas, mas pedir Deus e estar com Deus. A oração até é mais
tarefa de Deus, desencadeada pelo Espírito do Filho. Está orientada para a
presença pessoal.
Esta exigência
reduz o perigo do intimismo, que tanto ameaça o orante cristão. A interioridade
não é propriamente lugar para o ensimesmamento mas para o encontro com Deus em Jesus Cristo ,
presente na oração através do seu Espírito. A oração não é coisa de palavras,
de técnicas de silêncio, de método, mas de encontro com o Deus vivo: encontra o
Cristo vivo dentro de nós. Se não é isto, não é oração: é um arremedo dela.
Quando rezamos
em autenticidade, encontrando Deus em amizade, então, apesar da aparente aridez,
algo acontece, numa corrente de relação que põe em andamento a mudança nas
nossas vidas: no encontro com Deus, Ele torna-nos um pouco mais iguais a Si
próprio, ama-nos com o mesmo amor com que Ele se ama.
4. A
fé e o encontro com o próximo
O autêntico
encontro com Deus na fé, na sua Palavra e na oração [19] leva
ao encontro com os irmãos na vida, põe em movimento a favor do próximo. Da fé,
o orante tira/extrai as ressonâncias
profundas para a edificação da caridade, sentindo responsabilidade pela comunidade
em que vive. Descobrindo
a nossa pobreza, a oração situa-nos onde se encontram também as necessidades e
os sofrimentos dos nossos irmãos. Coloca-nos no coração da dor do mundo. Tem
olhos de longo alcance e cura partilhando a dor do irmão. Pela fé conhecemos
Deus com o conhecimento do Filho; pela caridade amamos com o amor do Espírito
(Rm 5,5). Da fé e da oração brota um dinamismo de vida, que dá ao orante a
capacidade de intuir as implicações humanas, sociais, políticas, da acção de
Deus no mundo. Quem encontra Deus
encontra o amor, isto é, dispõe-se
ao serviço do amor. O amor ao Deus que o orante escuta na oração contemplativa
é fonte do amor oblativo ao próximo que ele escuta na vida. Os dois são
complementares. O dinamismo da fé bíblica e cristã, por cima de uma religião de
comportamentos irrepreensíveis e de propostas éticas, busca experiência de Deus
como Amor e do ser humano como irmão. E então capta um Deus cujo amor pede acção
social a favor do irmão.
Portanto, na
estrutura antropológica do encontro com Deus testemunhado na Bíblia está a
experiência espiritual de um encontro mediador com o ser humano. Depois da
incarnação de Deus no ser humano Jesus de Nazaré, os encontros com Deus passam
pelo encontro com o humano irmão, que aparece à fé como um rosto novo de Deus, um
rosto desafiador. Basta ter o espírito atento, que pela fé contemplativa sabe
identificar vestígios de Deus e ser fiel às suas interpelações. Nos humanos,
Deus faz ouvir as suas exigências de renovação, de libertação, de generosidade,
de justiça e de dignidade. Esta perspectiva de incarnação e de mediação implica
novas formas de buscar a união com Deus, nomeadamente numa espiritualidade
singular que compromete as pessoas na solidariedade para com os necessitados,
na comunhão com os dispensáveis da sociedade, na ajuda aos que sofrem.
A fé viva
faz-se verdade comprometida, amor solidário, justiça comunitária. É uma fé que
salva pelo amor que suscita. E dá unidade ao binómio «fé – vida», «oração –
trabalho». Porque liga tudo a um Princípio criador, dá unidade às diversas
dimensões da vida: à contemplação da natureza como ao compromisso social, à
meditação contemplativa como ao trabalho humano.
A pessoa de fé
não olha para o necessitado com uma visão sociológica, tentando desmascarar as
causas que geram os mecanismos do seu empobrecimento. Supondo tudo isso, olha
para o carente como ‘lugar’ de encontro com Jesus Cristo
ressuscitado, que se identificou com ele e grita pela reabilitação dele:
“estava com fome e destes-me de comer” (Mt 25,35). A fé não usa o pobre para se
encontrar com Cristo: ama o pobre amado por Cristo, ama o pobre pelo que ele é
e então também ama Cristo. O pobre é ‘sacramento’ do encontro de Deus com o
benfeitor e vice-versa. A fé que não desencadeia uma acção a favor do próximo
não só não gera amor aos “irmãos mais pequeninos”, “a quem vê”, mas também não
gera “amor a Deus, a quem não vê” [20].
Conclusão
A experiência
de Deus e o encontro com Ele é tanto mais verdadeira quanto menos pode
exprimir-se por palavras. Mas reforçar a função da razão no encontro de fé dá
mais força à própria fé.
Hoje, em linha
com o espírito do concílio Vaticano II, há cristãos disponíveis para fazerem
uma experiência do Deus vivo e amigo, e para responderem na fé com amor a esse Deus que nos
transcende, a esse Deus que, vindo ao nosso encontro em Jesus, nos dá a
plenitude do ser: “Cristo, que é o Homem novo, precisamente revelando o
mistério do Pai e do seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e
manifesta-lhe a sua altíssima vocação” [21].
Nessa altura, os místicos terão mais uma vez razão e nós teremos aproveitado do
seu encontro com Deus, encontrando-O também nós.
[1] BENTO XVI, Porta
fidei, 10.
[2] Cf. BENTO XVI, Verbum
Domini, 25.
[3] Mc 12,26; Lc 20,37; Ex 3,6.
[4] “O nosso coração vive inquieto relativamente a Deus, e
não pode ser de outro modo…”. Mas “também o coração de Deus vive inquieto
relativamente ao homem. Deus espera-nos. Anda à nossa procura. Também ele não
descansa enquanto não nos tiver encontrado… Deus vive inquieto connosco, anda à
procura de pessoas que se deixem contagiar por esta sua inquietação, pela sua
paixão por nós, pessoas que vivem a busca que habita no seu coração e, ao mesmo
tempo, se deixam tocar no coração pela busca de Deus a nosso respeito”: BENTO
XVI, homilia da Epifania, 6.1.2012.
[5] Jo 4,50. A “estreita ligação entre a Palavra de Deus e
a fé realiza-se no encontro com Cristo. De facto, com ele a fé toma a forma de
encontro com uma Pessoa à qual se confia a própria vida”: BENTO XVI, Verbum Domini, 25.
[6] BENTO XVI, Porta
fidei, 1.
[7] Subida do Monte
Carmelo, II, 22,3. Citamos a partir de Obras
completas (Edições Carmelo; Marco de Canaveses 20056).
[8] Ditos de luz e
amor, 26.
[9] Subida do Monte
Carmelo, II, 22,5.
[10] Romança sobre o
evangelho «In principio erat Verbum», 1 e 4: Obras completas (Edições Carmelo; Marco de Canaveses 2005) 49.52.
[11] “A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com
ele. E este «estar com ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se
acredita”: BENTO XVI, Porta fidei,
10.
[12] S. JOÃO DA CRUZ, Subida
do Monte Carmelo, I, 9,1.
[13] S. JOÃO DA CRUZ,
Cântico espiritual 1,1.
[14] S. JOÃO DA CRUZ, Subida
do Monte Carmelo, III, 8,5.
[15] Cf. I. MATTHEW, El impacto de Dios (Claves; Monte
Carmelo; Burgos) 151-236.
[16] Subida do Monte
Carmelo, II, 9,1.
[17] S. JOÃO DA CRUZ,
Cântico espiritual 11,11.
[18] S. JOÃO DA CRUZ, Subida
do Monte Carmelo, II, 17,8. Cf. S. AGOSTINHO, De Trinitate, XIV, 11.
[19] A leitura da palavra da Escritura na fé da Igreja
proporciona um encontro com Jesus. A Palavra de Deus, sentida pela fé como
inspirada pelo seu Espírito, proporciona um encontro de comunhão espiritual e
de reconhecimento de uma Presença transcendente. Exprime um encontro original
do crente com o mundo à sua volta, coisa que anda próxima do encontro com o
sentido da vida. Desperta para a experiência pessoal do sentido do mundo e de
um encontro com Deus. A lectio divina
“é verdadeiramente capaz… de gerar o encontro com Cristo, Palavra divina viva”
(BENTO XVI, Verbum Domini, 87).
[20] Mt 25,40; 1Jo 3,17-18 e 4,20.
[21] VATICANO II, Gaudium
et spes, 22. Todas as potencialidades do ser humano ficaram preenchidas
pela incarnação de Deus em Jesus.
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