segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A beleza no Canto Liturgico


Ir. Miria Therezinha Kolling, icm*
1. Introdução

Ouvindo, como ouço no momento, o mundialmente famoso grupo vocal The Swingle Singers, que interpreta a música sacra, quase divina, dos nossos geniais compositores clássicos, cantando-os a oito vozes, dou-me conta, uma vez mais, de que a música é mesmo “mediadora da transcendência”, a linguagem do belo, o caminho privilegiado para chegar a Deus, Beleza infinita! Deixo-me impregnar por essa música reveladora do cantar do céu e abro o coração ao Espírito-Amor, ele que, no dizer de santo Inácio de Antioquia, é como a cítaraque toca as cordas do nosso coração e nos faz vibrar em sintonia com o Divino Músico, em unidade com os irmãos. E deixo-me comover às lágrimas, como santo Agostinho, ao ouvir os cânticos da igreja de santo Ambrósio, em Milão, no início da sua conversão, “não tanto pelo canto quanto pelo que vem cantado, se a execução é feita por uma bela voz e com adequada modulação”.


Não, a música não é só expressão dos sentimentos nem tem como finalidade apenas o prazer estético, nosso deleite humano, ao ser concebida como o conjunto de sons ordenados entre si, arte pela arte. Para nós, cristãos, ela é, sim, linguagem do sagrado, mediação para nos abrirmos ao infinitamente Outro, um meio de comunicação que favorece nosso encontro com aquele que é o Criador de toda a beleza, com o Salvador que re-criou o belo, o justo e o verdadeiro com seu mistério pascal e com o Santo Espírito, sopro de vida e unidade que habita nosso interior, fazendo-nos participar da comunhão trinitária de Deus. Assim, pela música, chegamos ao coração de Deus e Deus desce a nós, uma vez que Cristo, o divino músico, expressão do canto de Deus, pela sua encarnação, nos veio trazer o canto do céu, ensinando-nos a fazer da vida e do mundo a grande sinfonia do amor sob a sua perfeita regência.

1.1. A beleza divina.
Quando falamos da beleza de Deus, logo nos vem à mente e ao coração santo Agostinho, que assim se dirige ao Amado e Belo de sua alma, quando o descobre no processo de sua conversão:
Tardete amei, belezasempreantiga e semprenova, tardete amei! Eisque habitavas dentro de mim e eute procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, maseunão estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, quenão existiriam se em ti não existissem. Tume chamaste, e teugrito rompeu a minhasurdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eute saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tume tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz.
Um caminho que parte da beleza das coisas criadas e chega à Beleza do Deus Trindade, origem e fonte de toda beleza, de todo bem! Uma vez que experimentamos Deus em sua beleza e verdade, deixando-nos tocar por seu amor, somos por Ele atraídos e seduzidos, aumentando sempre mais nossa fome e sede do Infinito. O encontro verdadeiro com o Belo vai além dos sentidos e da sensibilidade e abrange a totalidade do nosso ser, transformando nossa vida e fazendo-a também beleza e resplendor, iluminada pela Luz que vem do Alto! Quem contempla o Belo e fixa nele o olhar, deixando-se iluminar por ele, acaba se tornando belo também...
1.2. A beleza que salvará o mundo
À célebre e intrigante pergunta feita por Dostoievski em sua obra O idiota – “É verdade, príncipe, que um dia disseste que o mundo será salvo pela beleza?... Que beleza salvará o mundo?”–, o cardeal Carlo Maria Martini responde, escrevendo em 1999-2000, por ocasião do Grande Jubileu, importante e questionadora carta pastoral ao seu povo de Milão, chamada Qualbeleza salvará o mundo? É óbvia a resposta: só quem pode nos salvar é“a beleza sempre antiga e sempre nova, a beleza de Deus; a beleza que caracteriza o belo e bom Pastor, que dá a vida por suas ovelhas”. Falando da Trindade como modelo de relação e comunhão, Martini afirma mais ou menos o seguinte:
É na Trindadeque se revela o mistério da salvação, cujocentro é a encarnação do Filho, Jesus Cristo. Deus se revela Pai, dando-nos seuFilho; o Filho, porsuavez, revela suaunidadecom o Pai, abandonando-se a ele e à suaVontadeaté a morte, e morte de cruz; o EspíritoSantonos é dadopeloFilho e continua suapresença no meio de nós. A partir do mistério pascal, Deus se mostraPai, Filho e EspíritoSanto.

Os padres gregos o dizem em outras palavras: “Do Pai, pelo Filho, no Espírito”. 
A beleza que salvará o mundo é o Verbo encarnado, Jesus Cristo, beleza em pessoa, lugar e espaço onde a Verdade e a Beleza eternas irrompem na história, se realizam no coração da humanidade, daqueles que creem. Armando sua tenda entre nós, o Logos – Palavra eterna – traz a eternidade para o tempo, permitindo que os mortais participemos novamente da eternidade do Deus infinito e conduzindo-nos de novo à fonte da beleza. Em sua graça e beleza, o amor vem a nós e nos eleva à comunhão suprema do Deus Tri-unidade. Bruno Forte completa de forma admirável essa ideia:

A verdadenão é algoque se possui, masAlguémquenos possui. Não é então a presunção da posse de quemvê, mas a humildade da pobreza de quemescuta e, escutando, corresponde, que será a experiência da verdadequesalva: a verdadenão tranquiliza você, mas faz de vocêperegrino; nãolhe dá respostas, mas acende emvocê as perguntas verdadeiras.
Tanto o cardeal Martini como Bruno Forte, este citando sobretudo Evdokimov, místico da tradição cristã oriental, falam-nos da “beleza tabórica” de Cristo, que se transfigura no Tabor diante dos discípulos, revestido de glória e esplendor. Ele, a luz do primeiro dia que brilha nas trevas, revela o rosto luminoso de Deus, banhando-nos e transformando-nos também em luz. Fazer a experiência da sua presença iluminadora nos leva a exclamar: “Senhor, é bom, é belo para nós estarmos aqui!” É dessa Beleza que vem do alto que o discípulo de Jesus deve nutrir-se e sempre de novo tornar-se anunciador e testemunha. Mas a Belezadivina que salva é também a “beleza crucificada”: o “mais belo entre os filhos dos homens” (Sl 44) se fez solidário com nosso sofrimento, assumiu nossas dores, experimentando a kenosis, o esvaziamento total de si, até a morte numa cruz. Nesse sentido, a beleza é um mistério, mistério de amor e comunhão perfeita dos Três: o Amado (Filho) se abandona ao Amante (Pai), de quem procede, na unidade e na força do Amor que os une (Espírito Santo), garantindo também a nossa comunhão com o eterno Deus-Amor. Santo Tomás de Aquino, teólogo e poeta, ajuda-nos a ler e cantar a beleza desse mistério santo e pascal do Senhor nestes versos eucarísticos:

“Jesus, agoraoculto a meusolhos, aconteça – Te peço – o quetanto almejo: vendo-te com o rostodescoberto, eu seja felizcom a visão de tua glória!” 
Essa é a beleza da Santidade encarnada, oferecida por Deus para a salvação da humanidade!

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