Texto completo da quarta pregação de Advento do Pe. Raniero Cantalamessa,
ofmcap.
São Leão Magno
e a fé em Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem
Por Pe. Raniero
Cantalamessa, OFM Cap
ROMA, 04 de Abril de 2014 1. Oriente e ocidente unânimes sobre Cristo
Existem vários caminhos, ou métodos, para aproximar-se à pessoa de Jesus.
Pode-se, por exemplo, partir diretamente da Bíblia e, também neste caso, é
possível seguir várias vias: a via tipológica, seguida na mais antiga catequese
da Igreja, que explica Jesus à luz das profecias e das figuras do Antigo
Testamento; a via histórica, que reconstrói o desenvolvimento da fé em Cristo a
partir das várias tradições, autores e títulos cristológicos, ou dos diversos
ambientes culturais do Novo Testamento. Pode-se, pelo contrário, partir das
perguntas e dos problemas do homem de hoje, ou até mesmo da própria experiência
de Cristo, e, de tudo isso, chegar à Bíblia. Todos esses são caminhos
amplamente explorados.
A Tradição da Igreja elaborou, bem rápido, uma via de acesso ao mistério de
Cristo, um modo seu de recolher e organizar os dados bíblicos relativos a ele,
e esta via se chama o dogma cristológico, a via dogmática. Por dogma
cristológico compreendo as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos
primeiros concílios ecumênicos, especialmente o de Calcedônia, que, em
substância, se resumem nesses três pilares: Jesus Cristo é verdadeiro homem, é
verdadeiro Deus, é uma só pessoa.
São Leão Magno é o Padre que eu escolhi para introduzir-nos nas profundidades
deste mistério. Por um motivo bem específico. Na teologia latina estava pronta
por dois séculos e meio a fórmula da fé em Cristo que se tornara o dogma de
Calcedônia. Tertuliano tinha escrito: “Vemos duas naturezas, não confusas, mas
unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem[1]”. Depois de muita pesquisa,
os autores gregos chegam, por conta própria, a uma formulação idêntica em
substância; mas não porque eles tenham se atrasado ou perdido tempo, e sim
porque só agora era possível dar àquela fórmula o seu verdadeiro significado,
tendo eles evidenciado, enquanto isso, todas as implicações e resolvido as
dificuldades.
O Papa São Leão Magno é aquele que gerenciou o momento em que as duas
correntes do rio – aquela latina e aquela grega – se uniram e com a sua
autoridade de bispo de Roma favoreceu o acolhimento universal. Ele não se
contenta em simplesmente transmitir a fórmula herdada por Tertuliano e retomada
por Agostinho, mas a adapta aos problemas que apareceram nesse ínterim, entre o
concílio de Éfeso do 431 e aquele de Calcedônia do 451. Eis, em grandes linhas,
o seu pensamento cristológico, como foi exposto no famoso Tomus ad Flavianum[2].
Primeiro ponto: a pessoa do
Deus-homem é idêntica à do Verbo eterno: "Aquele que se fez homem, sob a forma
de servo, é o mesmo que na forma de Deus criou o homem". Segundo ponto:
a natureza divina e a humana coexistem nesta única pessoa que é Cristo, sem
mistura ou confusão, mas cada uma mantendo suas propriedades naturais (salva
proprietate utriusque naturae). Ele começa a ser o que não era, sem cessar
de ser o que era[3]. A obra da redenção exigia que “o único e mesmo mediador
entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, tivesse que ser capaz de morrer
em relação à natureza humana e não morrer com respeito à natureza divina".
Terceiro ponto: A unidade da pessoa justifica o uso da comunicação dos
idiomas, pela qual podemos afirmar que o Filho de Deus foi crucificado e
enterrado, e também que o Filho do homem veio do céu.
Foi uma tentativa, em grande parte bem sucedida, de finalmente encontrar um
acordo entre as duas grandes "escolas" de teologia grega, a de
Alexandria e a de Antioquia, evitando os respectivos erros que eram o
monofisismo e o nestorianismo. Os antioquenos tinham o reconhecimento, para
eles vitais, das duas naturezas de Cristo, e portanto, da plena humanidade de
Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas reservas e resistências, podiam
encontrar na formulação de Leão o reconhecimento da identidade da pessoa do
Verbo encarnado e aquela do Verbo eterno, que estava nos seus corações por
acima de tudo.
Basta recordar o cerne da definição de Calcedônia para dar-se conta do
quanto esteja presente nela o pensamento do Papa Leão:
"Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o único e mesmo
Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo
perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado antes
dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós homens e
para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade;
subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível,
inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por
causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de
uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e
hipóstase[4]".
Poderia parecer uma fórmula tecnicamente perfeita, mas árida e abstrata,
porém, nela se baseia toda a doutrina cristã da salvação. Só se Cristo é homem
como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele também
é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal, a tal ponto que, como
se canta no Adoro te devote, “uma única gota de sangue derramado salva o
mundo todo do pecado" (“Cuius una stilla salvum facere totum mundum qui
ab omni scelere”)
Sobre este ponto, oriente e ocidente, são unânimes. Esta era a situação da
humanidade antes de Cristo, escrevem, com poucas diferenças entre eles, santo
Anselmo entre os latinos e o Cabasilas entre os ortodoxos. De um lado estava o
homem que tinha contraído a dívida pecando e que tinha que lutar contra satanás
para livrar-se, mas não podia fazê-lo, sendo a dívida infinita e sendo ele
escravo daquele que deveria ter vencido; por outro lado está Deus que podia
expiar o pecado e vencer o demônio, mas não deveria fazê-lo, não sendo ele o
devedor. Era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que devia
lutar e aquele que podia vencer, e é aquilo que aconteceu com Jesus,
“verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa[5]”.
2. Jesus da história e o Cristo do dogma novamente unidos
Estas tranquilas certezas sobre Cristo, nos últimos dois séculos, foram
atingidas por um ciclone crítico que tendia a tirar-lhes toda a consistência e
a qualificá-las como puras invenções dos teólogos. A partir de Strauss,
tornou-se uma espécie de grito de guerra entre os estudiosos do Novo
Testamento: libertar a figura de Cristo dos grilhões do dogma, para reencontrar
o Jesus histórico, o único real. "A ilusão de que Jesus possa ter sido
homem no sentido pleno e que como única pessoa seja superior à toda a
humanidade é a cadeia que ainda fecha a porta da teologia cristã ao mar aberto
da ciência racional[6]”. E eis a conclusão à qual o estudioso chega: “A ideia
do Cristo do dogma por um lado e o Jesus de Nazaré da história por outro estão
separados para sempre”.
Declara-se sem hesitação o pressuposto racionalista desta tese. O Cristo do
dogma não satisfaz as exigências da ciência racional. O ataque continuou, com
soluções alternativas, quase até os nossos dias. Tornou-se ele mesmo, a seu
modo, um dogma: para conhecer o verdadeiro Jesus da história é preciso
prescindir da fé nele posterior à Páscoa. Neste clima proliferaram
reconstruções fantasiosas da figura de Jesus a benefício do espetáculo, algumas
com pretensões de historicidade, mas que na verdade se baseavam em hipóteses de
hipóteses, todas respondendo a gostos ou reivindicações do momento.
Mas agora, eu acho, chegamos ao fim da parábola. É hora de tomar nota da
mudança que aconteceu neste setor, a fim de sair de uma certa atitude defensiva
e de vergonha que tem caracterizado os estudiosos crentes nos últimos anos, e
ainda mais para fazer chegar uma mensagem a todos aqueles que nestes anos
divulgaram profusamente imagens de Jesus ditadas por aquele anti-dogma. E a
mensagem é que não é possível mais escrever na boa-fé “Investigações sobre
Jesus” que fingem ser “históricas”, mas prescindem, ou melhor, excluem desde o
início, a fé nele.
Quem personaliza de modo mais claro a mudança em ato é um dos maiores
estudiosos vivos do NT, o inglês James D.G. Dunn. Ele resumiu em um pequeno
livro, intitulado "Mudar perspectivas sobre Jesus”, os resultados da sua
monumental pesquisa sobre as origens do cristianismo[7]. O autor pôs a
descoberto as raízes dos dois pressupostos em que se baseiam a contraposição
entre Jesus histórico e o Cristo da fé: primeiro, que para conhecer o Jesus da
história é necessário prescindir da fé pós-pascal; segundo, que para conhecer o
que realmente disse e fez o Jesus histórico, é preciso libertar a tradição das
camadas e das adições posteriores e voltar para a camada original, ou à
primeira "redação", de uma determinada perícope evangélica.
Contra o primeiro pressuposto, Dunn demonstra que a fé começou antes da
Páscoa; se alguns o seguiram e se tornaram seus discípulos é porque tinham
acreditado nele. Trata-se de uma fé ainda imperfeita, mas de fé. Nesta fé, o
evento pascal marcará certamente um salto de qualidade, mas saltos de
qualidade, embora menos importantes, já tinham acontecido antes da Páscoa, em
momentos particulares, como a transfiguração, certos milagres sensacionais, o
diálogo de Cesaréia de Filipe. A Páscoa não é um início absoluto.
Contra o outro assunto, Dunn demonstra como, embora admitindo que as
tradições evangélicas circularam por um certo tempo de forma oral, os
estudiosos aplicavam sempre a tal tradição o modelo literário, como se faz hoje
quando se quer voltar, de edição em edição, ao texto original de uma obra. Se
levarmos em conta as leis que regularizam - até no presente, em certas culturas
-, a transmissão oral das tradições de uma comunidade, veremos que não há
necessidade de enxugar um dito evangélico, em busca de um hipotético núcleo
originário, uma operação que abriu as portas a todo tipo de manipulação dos
textos evangélicos, acabando por repetir aquilo que acontece quando se descasca
uma cebola em busca do seu núcleo sólido que não existe. Algumas destas
conclusões são aquelas que os estudiosos católicos desde sempre sustentaram[8],
mas Dunn tem o mérito de tê-las defendido com argumentos dificilmente
refutáveis a partir da mesma pesquisa histórico-crítica e com as suas próprias
armas.
O rabino americano J. Neusner, com o qual Bento XVI estabelece um diálogo
em seu primeiro livro sobre Jesus de Nazaré, dá por suposto este resultado.
Partindo de um ponto de vista autônomo e por assim dizer neutro, ele faz notar
como é vã a tentativa de separar o Jesus histórico do Cristo da fé pós-pascal.
O Jesus histórico, o dos Evangelhos, por exemplo do discurso da montanha, é já
um Jesus que exige a fé na sua pessoa como alguém que pode corrigir Moisés, que
é senhor do sábado, pelo qual também pode-se fazer uma exceção ao quarto
mandamento; em suma como alguém que se coloca em pé de igualdade com Deus. É
próprio por isso, diz o rabino, que embora fascinado pela figura de Jesus,
ele não poderá mais ser um dos seus discípulos.
O estudo sobre o NT termina aqui; chega a provar a continuidade entre o
Jesus da história e o Cristo do querigma, não vai mais longe. Resta provar a
continuidade entre o Cristo do querigma e o do dogma da Igreja. A fórmula de
Leão Magno e de Calcedônia marca um desenvolvimento coerente da fé do Novo
Testamento, ou representa, pelo contrário, uma ruptura com relação a ela? Este
foi o meu principal interesse nos anos em que eu me ocupava de História das
origens do cristianismo e a conclusão a que cheguei não difere daquela do
Cardeal Newman, em seu famoso ensaio "Sobre o desenvolvimento da doutrina
cristã[9]". Houve certamente a mudança de uma cristologia funcional (o que
Cristo "faz") a uma cristologia ontológica (o que Cristo
"é"), mas não se trata de uma ruptura porque o mesmo processo se dá
já no interior do querigma, por exemplo, na passagem da cristologia de Paulo
àquela de João, e em Paulo mesmo, na passagem das suas primeiras cartas àquelas
da prisão, Filipenses e Colossenses.
3. Além da fórmula
Desta vez o próprio argumento exigia fixar-se um pouco mais na parte
doutrinal do tema. A pessoa de Cristo é o fundamento de todo o cristianismo.
“Se a trombeta emite um som incerto, quem se preparará para a batalha?”, dizia
São Paulo (1 Cor 14, 8): se não tem ideia clara sobre quem é Jesus Cristo, que
força terá a nossa evangelização? Nos resta, no entanto, fazer agora uma
aplicação prática para a vida pessoal e a fé atual da Igreja, que é o objetivo
constante da nossa revisão dos Padres.
Quatro séculos e meio de formidável trabalho teológico deram à Igreja a
fórmula: “Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem; Jesus Cristo é uma
só pessoa”. Mais sinteticamente ainda: ele é “uma pessoa em duas naturezas”. A
esta fórmula se aplica perfeitamente o dito de Kiekegaard: "A terminologia
dogmática da Igreja primitiva é como um castelo encantado, onde descansam em um
sono profundo os mais graciosos príncipes e princesas. Basta somente
acordá-los, para que se coloquem de pé em toda a sua glória[10]”. A nossa
tarefa é, portanto, a de despertar e de dar sempre nova vida aos dogmas.
A investigação sobre os Evangelhos – mesmo aquela que lembramos agora de
Dunn – nos mostra que a história não nos pode levar ao “Jesus em si”, ao Cristo
como é na realidade. O que alcançamos nos evangelhos é sempre, em todas as
fases, um Jesus “lembrado”, mediado pela memória que dele conservaram os
discípulos, embora se uma memória crente. É como a ressurreição. "Alguns
dos nossos - dizem os dois discípulos de Emaús - foram ao túmulo e encontraram
as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas não o viram” (Lc 24, 24). A
história pode constatar que as coisas, com relação a Jesus de Nazaré, estão
como disseram os discípulos nos evangelhos, mas ele não o vê.
O mesmo acontece com o dogma. Ele pode levar-nos a um Jesus
"definitivo", “formulado”, mas Tomás de Aquino nos ensina que “a fé
não termina com os enunciados (enuntiabile), mas na realidade (res).
Entre a fórmula de Calcedônia e o Jesus real existe a mesma diferença que há
entre a fórmula química H2O e a água que bebemos ou na qual nadamos. Ninguém
pode dizer que a fórmula H2O é inútil ou que não descreve perfeitamente a
realidade; somente não é a realidade! Quem nos poderá levar ao Jesus “real” que
está além da história e por trás da definição?
E eis que nos deparamos com a grande notícia reconfortante. Existe a
possibilidade de um conhecimento “imediato” de Cristo: é aquele que nos dá o
Espírito Santo enviado por ele mesmo. Ele é a única “mediação não-mediata”
entre nós e Jesus, no sentido que não age como um véu, não constitui um
diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter ego”, da
sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que “o Espírito Santo é a nossa
mesma comunhão com Cristo[11]”. E nisso, aquela do Espírito é diferente de
qualquer outra mediação entre nós e o Ressuscitado, seja eclesial que
sacramental.
Mas é a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o
propósito do conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em
Pentecostes se traduz em uma repentina iluminação de todo o trabalho e a pessoa
de Cristo. Pedro conclui o seu discurso com aquela espécie de definição “urbi
et orbi” do senhorio de Cristo: “Saiba, portanto, com certeza toda a casa de
Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes”
(At 2, 36).
São Paulo afirma que Jesus Cristo é revelado "Filho de Deus com poder
pelo Espírito de santidade" (Rm 1, 4), isto é, por obra do Espírito Santo.
Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser por uma iluminação interior
do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12, 3). O Apóstolo atribui ao Espírito Santo “a
compreensão do mistério de Cristo", que foi dada a ele, como a todos os
santos apóstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5). Só se forem “fortalecidos pelo
Espírito”, - continua o Apóstolo – os crentes poderão “compreender a largura e
o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o amor de Cristo que excede
todo conhecimento” (Ef 3, 16-19).
No Evangelho de João, o próprio Jesus anuncia esta obra do Paráclito com
relação a ele. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos discípulos;
recordar-lhes-á tudo o que ele disse; os conduzirá à toda verdade sobre a sua
relação com o Pai; lhes dará testemunho. Exatamente isso será, de agora em
diante, o critério para reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito de Deus e
não de um outro espírito: se leva a reconhecer Jesus vindo na carne (cf. 1 Jo
4, 2-3).
4. Jesus de Nazaré, uma "pessoa"
Com a ajuda do Espírito Santo, façamos então uma pequena tentativa de
“acordar” o dogma. Do triângulo dogmático de Leão Magno e de Calcedônia –
“verdadeiro Deus”, “verdadeiro homem”, “uma pessoa” – nos limitamos a tomar em
consideração somente o último elemento: Cristo “uma pessoa”. As definições
dogmáticas são “estruturas abertas”, capazes de acomodar novos significados, o
que é possível graças ao progresso do pensamento humano. Na sua etapa mais
antiga, pessoa (do latim personare, ressoar) indicava a máscara que o
ator precisava para fazer ressoar a sua voz no teatro; disso passou a indicar
rosto, portanto, indivíduo, até chegar ao seu significado mais elevado de “ser
individual de natureza racional” (Boécio).
No uso moderno, o conceito se enriqueceu de um significado mais subjetivo e
relacional, favorecido sem dúvida pelo uso trinitário de pessoa como “relação
subsistente”. Indica, portanto, o ser humano em quanto capaz de relação, de
estar como um eu diante de um tu. Nisso a fórmula latina “uma pessoa”
revelou-se mais fecunda do que aquela respectiva grega de “uma hispóstase”.
Hipóstase se pode dizer de cada objeto particular existente; pessoa, somente do
ser humano e, por analogia, do ser divino. Nós falamos hoje (e também os gregos
falam) de “dignidade da pessoa”, não de dignidade da hipóstase.
Aplicamos tudo isso ao nosso relacionamento com Cristo. Dizer que Jesus é
“uma pessoa” significa também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante
de mim, que posso tratar-lhe por tu como ele me trata por tu. É necessário
passar constantemente, no nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem
ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que
quiser, mas a quem e com quem, no geral, não se pode falar. Jesus,
infelizmente, para a maioria dos crentes é ainda um personagem, alguém de quem
se discute, se escreve muito, uma memória do passado, um conjunto de doutrinas,
de dogmas ou de heresias. É um ente, mais do que um existente.
O filósofo Sartre, em uma página famosa, descreveu a emoção metafísica que
produz a súbita descoberta da existência das coisas e pelo menos nisto podemos
dar-lhe crédito:
"Eu estava no Jardim Público. A raiz da castanheira entrava na terra,
exatamente sob o meu banco. Eu não me lembrava que era uma raiz. As palavras se
desvaneceram e, com elas, a significação das coisas, a maneira de empregá-las,
as frágeis referências que os homens tinham traçado na sua superfície. [ ...] E
depois tive aquela iluminação. Fiquei sem respiração. [...] geralmente a
existência esconde-se. Está presente à nossa volta; não se podem dizer duas
palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos [...] E depois sucedeu
aquilo: de repente, ali estava, ali estava, era claro como a água: a existência
dera-se subitamente a conhecer[12]”.
Para ir além das ideias e palavras de Jesus e entrar em contato com ele,
pessoa que vive, é necessário passar por uma experiência desse tipo. Alguns
exegetas interpretam o nome divino “Aquele que é”, no sentido de “aquele que
está”, que é presente, disponível, agora, aqui[13]. Esta definição aplica-se
perfeitamente também ao Jesus ressuscitado.
É possível ter Jesus como amigo, porque, depois de ter ressuscitado, ele
está vivo, está ao meu lado, posso tratá-lo como um ser vivo a um ser vivo, um
presente a um presente. Não com o corpo e nem sequer somente com a fantasia,
mas “no Espírito” que é infinitamente mais íntimo e real de ambos. São Paulo
nos assegura que é possível fazer tudo "com Jesus": quer comamos,
quer bebamos, quer façamos qualquer outra coisa (cf. 1 Cor 10, 31; Col 3,17).
Infelizmente, raramente pensamos em Jesus como um amigo e um confidente. No
subconsciente domina a imagem dele ressuscitado, ascendido ao céu, distante em
sua transcendência divina, que retornará um dia, no fim dos tempos. Esquecemos
que sendo, como diz o dogma, “verdadeiro homem”, melhor, a mesma perfeição
humana, ele possui no mais alto grau o sentimento da amizade que é uma das
qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento
conosco. No seu discurso de despedida, dando plena vazão a seus sentimentos ,
ele diz: " Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu
senhor faz; mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer todas as coisas que
ouvi do meu Pai" (Jo 15 ,15).
Já vi esse tipo de relacionamento com Jesus, não tanto nos santos, onde
prevalece o relacionamento com o Mestre, com o Pastor, com o Salvador, o
Esposo..., mas com os hebreus que, de modo semelhante a Saulo, chegam hoje a
aceitar o Messias. O nome de Jesus, de repente, muda de uma obscura ameaça, ao
mais doce e amado dos nomes. Um amigo. É como se a ausência de dois mil anos de
discussões sobre Cristo jogasse a favor deles. O deles não é nunca um Jesus
“ideológico”, mas uma pessoa de carne e sangue. Do sangue deles! Emociona ler
os testemunhos de alguns deles. Todas as contradições se resolvem em um
instante, todas as escuridões se iluminam. É como ver a leitura espiritual do
Antigo Testamento se realizar totalmente e rapidamente sob os próprios olhos.
São Paulo o compara à queda de um véu dos olhos (cf. 2 Cor 3,16).
Durante sua vida terrena, embora amando a todos sem distinção, somente com
alguns – com Lázaro e as irmãs e mais ainda com João, o “discípulo que ele
amava” – Jesus tem um relacionamento de verdadeira amizade. Agora, porém, que
ressuscitou e não está mais sujeito aos limites da carne, ele oferece a todo
homem e a toda mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais
pleno da palavra. Que o Espírito Santo, o amigo do esposo, nos ajude a aceitar
com alegria e maravilha esta possibilidade que preenche a vida.
[Tradução Thácio Siqueira/ ZENIT]
[1] Tertuliano, Adversus Praxean, 27, 11 (CC 2, p.1199)
[2] Leão Magno, Carta 28 (PL 54, 755 s.).
[3] Leão Magno, Sermo 27 (26),1 (PL 54, 749).
[4] Denzinger, Enchiridion Symbolorum, 301-302.
[5] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); Cf Anselmo, Cur
Deus homo?, II, 18.20; Tomas de Aquino, Summa theologiae, III, q.
46, art. 1, ad 3.
[6] D.F. Strauss, Der Christus des Glaubens
und der Jesus der Geschichte, 1865.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.