É possível ter Jesus como amigo porque, tendo ressuscitado, ele está
vivo, está ao meu lado
Na quarta
pregação da Quaresma Pe. Cantalamessa fala do dogma cristológico e do desejo de
Jesus de ser nosso amigo
Por Laura Guadalupe
ROMA, 04 de Abril de 2014 Existem várias vias de acesso ao mistério
de Cristo. Padre Raniero Cantalamessa, na sua quarta pregação de Quaresma,
continua o caminho traçado da Tradição da Igreja: o “dogma cristológico”,
compreendido como “as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos
primeiros concílios ecumênicos, especialmente no de Calcedônia”. Em definitiva
tais verdades, continua o Capuchinho, “se reduzem aos seguintes três pilares:
Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa”.
O pregador da Casa Pontifícia escolhe São Leão Magno para entrar nas
profundezas do mistério cristológico. De fato, ele foi o papa reinante no
momento em que a teologia latina e aquela grega se encontraram. São Leão Magno
não se limitou a transmitir a fórmula de Tertulliano, que tinha escrito: “Vemos
duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e
homem”. Foi mais longe, adaptando a fórmula “aos problemas que surgiram nesse
meio tempo, entre o concílio de Éfeso do 431 àquele de Calcedônia do 451”.
Padre Cantalamessa observa que o pensamento cristológico do Papa Leão,
exposto no Tomus ad Flavianum, encontra-se no cerne da definição de Calcedônia.
Cita, portanto, o ponto em que se declara: "Ensinamos por unanimidade que
deve-se reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na
divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem [...], gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos
últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem
segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso,
imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a
diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo
preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam
para formar uma só pessoa e hipóstase”
Na fórmula de Calcedônia, diz o capuchinho, "repousa toda a doutrina
cristã da salvação”. De fato, "só se Cristo é homem como nós, o que ele
faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele mesmo é Deus, aquilo que
faz tem um valor infinito e universal”, tanto que, como se canta no Adoro te
devote, “somente uma gota do sangue que derramou salva o mundo todo do pecado”.
É este um tema sobre o qual o oriente e o ocidente são unânimes.
Santo Anselmo, entre os latinos, e Cabasilas, entre os ortodoxos,
apresentam poucas diferenças entre eles quando escrevem que, antes de Cristo, o
homem tinha contraído uma dívida infinita com o pecado. Tinha que lutar contra
satanás para livrar-se, mas não podia porque era escravo exatamente daquele que
deveria vencer. Por outro lado Deus podia expiar o pecado e vencer, mas não
tinha que fazê-lo porque não era ele o devedor. Portanto, continua padre
Cantalamessa, “era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele
que tinha que lutar e aquele que podia vencer”, e é isso que aconteceu com
Jesus, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa”.
Estas certezas a respeito de Cristo, no entanto, ao longo dos últimos dois
séculos foram colocadas em discussões por estudiosos que, a partir de Strauss,
procuraram classifica-las como “puras invenções dos teólogos”, com a finalidade
de levar adiante uma tese que separava o Cristo do dogma do Jesus de Nazaré da
história. Eles diziam que “para conhecer o verdadeiro Jesus da história” era
preciso “prescindir da fé nele posterior à Páscoa”.
O pregador da Casa Pontifícia fala das "reconstruções
imaginativas" sobre a figura de Jesus proliferadas em um contexto
semelhante e adverte: “Não é possível mais em boa fé escrever “pesquisas sobre
Jesus” que pretendem ser ‘históricas’, mas prescindem, ou melhor, excluem do do
ponto de partida, a fé nele”. De tal forma, continua o capuchinho, há uma
mudança em ato que leva o nome de James D.G. Dunn, um dos maiores estudiosos
vivos do Novo Testamento. No livro intitulado “Mudar perspectiva sobre Jesus”,
Dunn erradica os pressupostos daquela tese que contrapõe o Cristo da fé e o
Jesus histórico, citando, entre as várias argumentações, o fato de que “a fé
começou antes da Páscoa”, quando os discípulos começaram a seguir a Jesus
porque acreditavam nele. Embora imperfeita, se tratava ainda sempre de fé.
Cristo é a base de tudo no Cristianismo, então Pe. Cantalamessa se
pergunta: "Se não se tem ideias claras sobre quem é Jesus, que força terá
a nossa evangelização?”. Nem a história nem muito menos o dogma conseguem
dar-nos o Cristo da realidade, porque a história, transmitida pelos evangelhos,
leva a um Jesus “lembrado”, ou até mesmo mediado pela memória dos discípulos,
enquanto que o dogma pode levar a uma Jesus “definido”, “formulado”, que difere
da fórmula de Calcedônia como a água que bebemos difere da fórmula química H2O.
Como chegar, então, ao “Jesus real” que está “além da história e por trás
da definição”? Por meio do Espírito Santo que, lembra o pregador pontifício,
permite um conhecimento “imediato” de Cristo e é “a única mediação não mediata’
entre nós e Jesus, no sentido de que não age como um véu, não constitui um
diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter ego”, da
sua mesma natureza”. E, continua, “é a Escritura mesma que nos fala deste papel
do Espírito Santo com o propósito de conhecer o verdadeiro Jesus. A vinda do
Espírito Santo em Pentecostes resulta em uma iluminação repentina de todo o
trabalho e pessoa de Cristo".
Padre Cantalamessa apela, portanto, à ajuda do Espírito Santo para
“despertar” o dogma. Do triângulo de São Leão Magno e Calcedônia, pelo qual
Jesus Cristo é “uma pessoa em duas naturezas”, o capuchinho toma em
consideração o terceiro elemento. O uso moderno do conceito de “pessoa”
atribuiu à palavra de origem latina um significado subjetivo e relacional, pelo
qual indica “o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu
diante de um tu”. A fórmula latina “uma pessoa” apareceu portanto, mais fecunda
com relação à correspondente grega “uma hipóstase”, porque esta última pode
dizer-se de cada objeto existente, enquanto que “pessoa” pode referir-se
somente a um ser humano e, por analogia, divino.
Aplicando o discurso para o relacionamento com Cristo, padre Cantalamessa
explica que “dizer que Jesus é ‘uma pessoa’ significa também dizer que
ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe com
intimidade como ele a mim. É preciso passar continuamente, no nosso coração e
na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de
quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral,
não é possível conversar”. O pregador da Casa Pontifícia introduz portanto um
elemento essencial no seu discurso, e afirma que “é possível ter Jesus por
amigo, porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está do meu lado, posso
relacionar-me com ele como dois seres vivos o fazem, um presente a um presente.
Não com o meu corpo e nem mesmo somente com a fantasia, mas ‘no Espírito’ que é
também infinitamente mais íntimo e real do que ambos”.
Infelizmente, considera o capuchinho, é raro pensar em Jesus nestes termos,
ou seja, como um amigo, um confidente. Esquecemos que, sendo “verdadeiro
homem”, Ele “possui em sumo grau o sentimento da amizade que é uma das
qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento
conosco”, não chamando-nos mais servos, mas amigos (cf. Jo 15, 15).
Na sua vida terrena, Cristo estabeleceu relações de verdadeira amizade
somente com alguns, embora amasse a todos indistintamente. Agora, como
ressuscitado, “não está mais sujeito às limitações da carne” mas, continua
padre Cantalamessa, “oferece a cada homem e a cada mulher a possibilidade de
tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra”. A quarta pregação da
Quaresma conclui, portanto, com o desejo de que o Espírito Santo “nos ajude a
acolher com maravilha e alegria esta possibilidade que preenche a vida”.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.