II Domingo da Quaresma: um êxodo diferente
I. INTRODUÇÃO
GERAL
No segundo
domingo da Quaresma também se encontra, todos os anos, o episódio da
transfiguração, cada vez à luz de um dos evangelhos sinóticos. Ainda no início,
é bom olhar um pouco melhor para o caminho e para a chegada. Para quem se
prepara para o batismo ou para renovar os compromissos do seu batismo e vivê-lo
melhor, será bom também ver o que se pode aprender do episódio.
Este ano a
versão é a de Lucas, que nem fala de transfiguração, mas apenas do rosto de
Jesus transformado pela oração e da brancura e brilho de suas roupas.
Fala da morte
de Jesus como um êxodo, uma saída semelhante à dos hebreus da escravidão do
Egito. Jerusalém é o ponto central para Lucas, tanto no evangelho quanto no
livro dos Atos dos Apóstolos. Se a rede de comunidades cristãs fundada por
Paulo era acusada de negar sua origem judaica, Lucas contesta, colocando
Jerusalém sempre no centro. O êxodo ou a saída de Jesus que se dá em Jerusalém
pode ter, então, vários significados.
Jerusalém e
tudo o que ela significa ter-se-ão transformado em outro Egito, nova “casa da
escravidão”? A saída de Jesus da cidade explica-se pela necessidade de ele ser
crucificado fora dela – o que era normal e exigido pela Lei, pois a crucifixão
torna impuro o lugar – ou também significa uma saída que ele abriu para a
humanidade? A morte de cruz é um êxodo, uma saída, porque escapa totalmente a
uma leitura e interpretação de Dt 21,23 (quem morre pendurado é maldito por
Deus)?
II. COMENTÁRIO
DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura
(Gn 15,5-12.17-18)
Abrão está
velho e sem filhos. Deus dá-lhe a esperança de tornar-se pai de enorme
multidão. O fogo que passa entre as metades de animais sacrificados simboliza
que Deus está firmando um compromisso com Abrão.
Abrão é modelo
do patriarca ou pai grandioso, lembrado por inúmeras gerações. Ele, porém, não
é pai grandioso (o significado do seu nome) por causa de seu vigor físico – já
estava velho e debilitado quando Javé lhe prometeu grande descendência. Deus é
que fez dele o pai da multidão (significado do nome Abraão). Para tanto,
bastou-lhe acreditar na promessa de Deus. Sua fé fê-lo merecer, fez com que o
cumprimento da promessa lhe fosse de justiça.
Javé
prometeu-lhe também que seria proprietário da terra onde estava. Para garantir
isso a Abraão, fez com ele uma aliança.
As alianças ou
contratos antigos eram firmados com um rito de sangue. O mais comum era as
partes contratantes passarem entre metades de animais sacrificados,
pronunciando imprecações ou “rogando pragas”, como se dissessem: “Aconteça-me o
mesmo que a estes animais se eu não cumprir o que foi contratado!”.
A promessa de
Deus adquire, então, o caráter de uma aliança. Ao cair da tarde, no
claro-escuro, fumaça e tocha passam por entre as metades dos animais
sacrificados. Fumaça e tocha, o obscuro e a luz, simbolizam o Deus Javé. Ele é,
ao mesmo tempo, o totalmente outro, que se encontra na obscuridade da fumaça, e
o luzeiro, tocha que clareia e mostra o caminho.
Javé se
compromete com Abrão, pai grandioso, que se tornará Abraão, pai da multidão, a
dar-lhe um chão, a propriedade de uma terra.
2. II leitura
(Fl 3,17-4,1)
Paulo alerta a
comunidade contra os que querem exigir que os cristãos não judeus também se
circuncidem e se submetam às normas da antiga religião. Reduziam, além disso, a
religião a controle de alimentos. Será que Deus está no estômago? Nós pomos fé
em Jesus morto e ressuscitado. A salvação para nós passa pela cruz.
Paulo foi
fariseu e fiel observante de todas aquelas normas. Perseguiu os cristãos por
julgar absurda a afirmação de que um crucificado era a salvação que Deus havia
mandado ao mundo, pois um crucificado é, segundo Dt 21,23, maldito por Deus.
Quando
entendeu, entretanto, que Jesus era mesmo o Messias, o Cristo, deixou de lado
tudo o que para si era o único caminho de salvação, a observância de todas
aquelas leis, e passou a seguir Jesus crucificado. Por isso, pede que os
filipenses o imitem, sigam o exemplo seu e de outros e não se deixem iludir.
Os que querem
se apoiar somente na observância da Lei são inimigos da cruz de Cristo,
tiram-lhe toda a importância. Isso faz Paulo chorar. O destino destes é a
destruição, enquanto cabe aos cristãos aguardarmos a transformação da nossa
humilde pessoa à imagem do Cristo ressuscitado e glorioso.
Com a
importância tão grande que dão às prescrições alimentares, parecem dizer que
seu Deus está no estômago. Sua glória é a circuncisão, que se encontra naquilo
que o homem busca esconder, porque sente vergonha. Em tudo são contraditórios.
3. Evangelho
(Lc 9,28-36)
Jesus já falou
e voltará a falar da sua paixão. É nesse meio que Lucas situa a transfiguração.
A morte humilhante de Jesus não é o fim, é a saída. Tudo está na Bíblia, a Lei
(Moisés) e os Profetas (Elias). Os discípulos não escutam.
Marcos e Mateus
situam o episódio no sexto dia, e Lucas, no oitavo. Não o fazem porque tiveram
informações diferentes, mas porque olham de maneira diversa o significado do
episódio. O sexto dia lembra o dia da criação do homem: é certamente no
contexto da criação de nova humanidade que Marcos quer entender a
transfiguração. O “mais ou menos” oitavo dia de Lucas mostra que ele conhecia o
texto de Marcos, mas queria lembrar o oitavo dia, o começo da nova criação do
universo. Depois do descanso do sétimo, é novamente o primeiro dia, o dia da
ressurreição de Jesus com seu significado cósmico e até ecológico.
Jesus leva à
montanha Pedro, Tiago e João. Pedro é aquele que, logo após afirmar ser Jesus o
Messias, não admitiu que pudesse ser um Messias sofredor, humilhado pelos
poderosos. Tiago e João em Mc 10,35-38 (em Mt é a mãe deles, e Lucas só fala de
uma discussão sobre quem seria o maior) pediram a Jesus os primeiros lugares na
sua glória ou poder e provocaram a discussão sobre qual o maior entre os doze.
Os três precisam de boa lição e por isso são levados à montanha, sozinhos, à
parte (Mc e Mt), ao encontro com Deus (Lc).
Só Marcos e
Mateus usam o verbo transfigurar, metamorfosear. Lucas diz apenas que o rosto
de Jesus mudou de aparência enquanto ele orava.
Só Lucas explicita
o teor da conversa de Jesus com Moisés e o profeta Elias, representantes das
Escrituras do Primeiro Testamento, então divididas em Lei de Moisés e Profetas.
Conversavam sobre a paixão de Jesus que deveria ocorrer em Jerusalém.
O Primeiro
Testamento fala de um Messias sofredor. O ponto mais alto disso se encontra nos
quatro poemas do livro de Isaías chamados de Cânticos do Servo de Javé (Is
42,1-7; 49,1-8; 52,13-53,12). O projeto de Deus é esse mesmo, mas aos três
discípulos ele interessa pouco. Lucas diz que, enquanto Jesus conversava com
Moisés e Elias, eles caem no sono.
Lucas fala da
morte humilhante de Jesus em Jerusalém – para onde em seguida vão começar a
subir (os três discípulos não querem entender isso) – como o êxodo de Jesus.
Ele foi morto fora da cidade. Jerusalém era o centro da terra onde correm leite
e mel. A terra da liberdade agora se tornou outro Egito, “a fornalha da
escravidão”, e não aceita Jesus.
Jesus sai de lá
como Moisés saiu do Egito, liderando um povo que buscava a terra da fartura e
da liberdade. Assumir a cruz é difícil, é complicado, é humilhação e morte, mas
é a saída, é o novo êxodo.
A voz de Deus é
fundamental. “O meu filho, o eleito” corresponde exatamente ao começo do
primeiro poema do Servo de Javé, que na tradução dos Setenta está “o meu
menino, o escolhido”. A cruz será a realização plena daquilo que dizem esses
poemas. Os principais discípulos não estão querendo ouvir isso da boca de
Jesus, mas Deus diz: “Escutai-o!”.
A nuvem, a
sombra e também o medo de ver Deus lembram a presença divina na manifestação do
Sinai. Quem eles agora devem ouvir é Jesus, a voz da nova aliança, que eles não
eram capazes nem tinham o desejo de ouvir quando anunciava a própria morte.
Pedro parece
querer pôr Jesus em pé de igualdade com os representantes do Primeiro
Testamento. Nada de novo, Jesus é apenas mais um, igual a Moisés e a Elias.
Propõe fazer uma tenda para cada um (pensava numa festa das Tendas?), a fim de
que os três se estabeleçam e fiquem ali. Por outro lado, fala por falar, sem
saber o que diz ou o que dizer.
Depois de a voz
de Deus se fazer ouvir, Jesus se encontra só: ele sozinho resume toda a
Escritura. Ele está a sós com eles, mas, com eles, parece que continua sozinho
para enfrentar os inimigos em Jerusalém.
III. PISTAS
PARA REFLEXÃO
Jesus estará
ainda hoje enfrentando sozinho o caminho da cruz? A cruz terá deixado mesmo de
ser um escândalo, algo absurdo e incompreensível? Não é preferível falar da
glória, do poder, do prestígio? Falar de cruz hoje dá sono; cruz, sacrifício em
favor do outro, são coisas fora de moda!
– A
ressurreição não se explica sem a cruz. A ressurreição vem justificar a cruz,
dar a aprovação de Deus a esse caminho tão estranho. A chegada dá razão ao
caminho, a ressurreição dá razão à cruz.
– Pedro, Tiago
e João terão entendido tão mal a caminhada de Jesus? Sem dúvida, os
evangelistas estavam pensando sobretudo nos dirigentes e fiéis de suas
comunidades: eram eles certamente que não estavam entendendo bem o caminho de
Jesus e começavam a se envolver mais com disputas de poder e prestígio. Como
diz o pessoal da roça, o evangelista “está batendo na carroça para o burro
entender”. Esses que têm dificuldade de entender não seremos nós hoje?
– Haverá outra
saída para a humanidade, para seus problemas sociais, políticos, ecológicos,
que não seja a cruz, a coragem de se sacrificar pelo outro, por todos, pelo
todo? Outro dia, uma criança disse: “Para a gente viver em comunidade, é
preciso passar pela cruz.
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