Texto completo da quinta pregação do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap. - ROMA, 11 de Abril de 2014
Quinta Pregação de Quaresma
São Gregório Magno e o entendimento espiritual das Escrituras
Em um esforço
por colocar-nos na escola dos Padres para dar um novo impulso e profundidade à
nossa fé, não pode faltar uma reflexão sobre o modo em que eles liam a Palavra
de Deus. Será o Papa São Gregório Magno a guiar-nos à “inteligência espiritual”
e a um renovado amor pelas Escrituras.
Aconteceu no
mundo moderno, em relação à Escritura, a mesma coisa que aconteceu com a pessoa
de Jesus. A busca do exclusivo sentido histórico e literal da Bíblia que
dominou nos últimos dois séculos partia dos mesmos pressupostos e levou aos
mesmos resultados da pesquisa sobre o Jesus histórico diferente do Cristo da
fé. Jesus era reduzido a um homem extraordinário, um grande reformador
religioso, mas nada mais; a Escritura era reduzida a um livro excelente, até
mesmo o mais interessante do mundo, mas um livro como os outros, que devia ser
estudado com os meios com os quais se estudam todas as grandes obras da
antiguidade. Hoje se está indo inclusive além. Um certo ateísmo militante
maximalista, anti-judaico e anti-cristão, tem a Bíblia, especialmente o Antigo
Testamento, como um livro "cheio de abominações", que deve ser
retirado das mãos dos homens de hoje.
Nesse assalto
às Escrituras, a Igreja opõe a sua doutrina e a sua experiência. Na Dei
Verbum, o Vaticano II reafirmou a perene validade das Escrituras, como
palavra de Deus à humanidade; a liturgia da Igreja a coloca em um lugar de
honra em cada celebração sua; tantos estudiosos, na crítica mais atual, unem
também a fé mais convicta no valor transcendente da palavra inspirada. A prova
talvez mais convincente é, no entanto , a da experiência . O argumento
que, como vimos, levou à afirmação da divindade de Cristo em Nicéia, em 325 e
pelo Espírito Santo em Constantinopla no 381, se aplica plenamente também à
Escritura: nela experimentamos a presença do Espírito Santo, Cristo ainda nos
fala, o seu efeito em nós é diferente do de qualquer outra palavra; portanto
não pode ser simples palavra humana.
1. O velho se
torna novo
O propósito da
nossa reflexão é ver como os Padres nos podem ajudar a reencontrar aquela
virgindade de escuta, aquele frescor e liberdade ao aproximar-se da Bíblia que
permitem experimentar a força divina que emana dela. O Padre e Doutor da Igreja
que escolhemos como guia, eu disse, é São Gregório Magno, mas para poder
compreender a sua importância neste campo temos que voltar para as fontes do
rio do qual ele próprio faz parte e traçar, pelo menos no geral, o seu percurso
antes de chegar até ele.
Na leitura da
Bíblia, os Padres só fazem continuar na mesma linha começada por Jesus e pelos
apóstolos, e só esse dado nos deveria fazer mais cautelosos ao julgá-los. Uma
rejeição radical da exegese dos Padres significaria uma rejeição da exegese do
próprio Jesus e dos apóstolos. Jesus, aos discípulos de Emaús, explica tudo
aquilo que se referia a ele nas Escrituras; afirma que as Escrituras falam
dele, que Abraão viu o seu dia; muitos gestos e palavras de Jesus se dão “para
que sejam cumpridas as Escrituras”; os primeiros dois apóstolos dizem dele:
“Achamos aquele de quem Moisés e os profetas escreveram" (Jo 1 , 45).
Mas todos estes
eram resultados parciais. Ainda não aconteceu o transfert total. Isso se
realiza na cruz e está contido na palavra de Jesus moribundo: “Tudo está
consumado”. Também no Antigo Testamento, houve novidades, retomadas,
transposições; por exemplo, o retorno da Babilônia era visto como uma renovação
do milagre do Êxodo. Eram saltos quantitativos. Agora acontece um salto
qualitativo, uma mudança de sinal: personagens, eventos, instituições, leis,
templo, sacrifícios, sacerdócio, tudo de repente aparece em uma outra luz. Como
quando em uma sala iluminada pela luz fraca de uma vela, se acende de repente
uma forte luz de néon. Cristo que é "luz do mundo" é também luz das
Escrituras. Quando se lê que Jesus ressuscitado "abre a mente dos discípulos
para compreender as Escrituras" (Lc 24, 45), refere-se a esta nova
inteligência, trabalhada pelo Espírito Santo.
O Cordeiro
quebra os selos e o livro da história sagrada pode finalmente ser aberto e lido
(cf. Ap 5). Tudo permanece, mas nada é como antes. É um instante que unifica –
e ao mesmo tempo distingue – os dois Testamentos e as duas alianças: “Clara e
brilhante, aqui está a grande página que separa os dois Testamentos! Todas as
portas são abertas ao mesmo tempo, toda a oposição se dissipa, todas as
contradições são resolvidas"[1]. O exemplo mais claro para compreender o
que acontece neste momento é a consagração na Missa, e, de fato, esta só é o
memorial da outra. Aparentemente nada mudou no pão e no vinho sobre o altar, no
entanto, sabemos que, após a consagração, eles já são algo completamente
diferente e nós os tratamos de maneira muito diferente de antes.
Os apóstolos
continuam esta leitura, aplicando-a à Igreja, assim como à vida de Jesus. Tudo
o que estava escrito no Êxodo era escrito para a Igreja (1 Cor 10, 11); a rocha
que se seguia e tirava a sede dos judeus no deserto anunciava Cristo e o maná,
o pão descido do céu; os profetas falaram dele (1 Pd 1, 10 ss), o que se diz do
Servo Sofredor de Isaías foi cumprido em Cristo, e assim por diante.
Passando do Novo
Testamento ao tempo da Igreja, notamos dois usos diferentes dessa nova
compreensão das Escrituras: um de tipo apologético e outro de tipo teológico e
espiritual; o primeiro, usado no diálogo com os de fora, o segundo para a
edificação da comunidade. Contra os judeus e os hereges que compartilham a
Escritura compõem-se os assim chamados “testemunhos”, ou seja, coleções de
frases ou passagens bíblicas a serem usadas para provar a fé em Cristo. Sobre
isso se baseia, por exemplo, o Diálogo com Trifon judeu de São Justino,
e tantos outros escritos.
O uso teológico
e eclesial da leitura espiritual começa com Orígenes, tido justamente como o
fundador da exegese cristã. A riqueza e beleza das suas intuições sobre o
sentido espiritual das Escrituras e das suas aplicações práticas é inesgotável.
Elas farão escola seja no oriente que no ocidente, onde começa a ser conhecido
ao mesmo tempo que Ambrósio. Junto com a sua riqueza e genialidade, a exegese
de Orígenes introduz, porém, na tradição exegética da Igreja também um elemento
negativo devido ao seu entusiasmo pelo espiritualismo de caráter platônico.
Tomemos a sua seguinte afirmação de método:
"Não se
deve acreditar que os fatos históricos sejam figuras de outros fatos históricos
e as coisas corpóreas de outras coisas corpóreas, mas, pelo contrário, que as
coisas corpóreas são figuras de coisas espirituais e os fatos históricos de
realidades inteligíveis[2]”.
Desta forma, à
correspondência horizontal e histórica, própria do Novo Testamento, pela qual
um personagem, um fato, ou uma palavra do Antigo Testamento é visto como
profecia e figura (typos) do que acontece em Cristo ou na Igreja, se
substitui a perspectiva vertical, platônica, pela qual um fato histórico e
visível, seja do Antigo como do Novo Testamento, se torna símbolo de uma ideia
universal e eterna. A relação entre profecia e realização tende a se
transformar na relação entre a história e o espírito[3].
2. As
Escrituras, pedras quadrangulares
Por meio de
Ambrósio e outros que traduziram as suas obras para o latim, o método e os
conteúdos de Orígenes, entram plenamente nas veias da cristandade latina e
continuarão a fluir por toda a idade média. Qual foi, então, na explicação da
Escritura, a contribuição dos latinos? Podemos resumir a resposta em uma só
palavra que é a que melhor expressa o seu gênio próprio: organização!
Àquele de
Orígenes se acrescenta, é verdade, a contribuição não menos criativa e audaz de
um outro gênio, aquela de Agostinho que enriquecerá de intuições e aplicações
novas e ousadas a leitura da Bíblia. Mas não é nesta linha que se coloca a
contribuição mais significativa dos Padres latinos, ou seja, na descoberta de
significados novos e escondidos na Palavra de Deus, mas na sistematização do
imenso material exegético que tinha se acumulado na Igreja, no traçar uma
espécie de mapa para orientar-se na sua utilização.
Esse esforço
organizativo – começado com Agostinho – foi levado à sua forma definitiva por
Gregório Magno e consiste na doutrina do quádruplo sentido da Escritura. Neste
campo, ele é considerado "um dos principais iniciadores e um dos maiores
patronos da doutrina medieval dos quatro sentidos", a ponto de se poder
falar da Idade Média como da “época gregoriana[4]”.
A doutrina dos
quatro sentidos da Escritura é uma grade, uma forma de organizar as explicações
de um texto bíblico ou de uma realidade da história da salvação, distinguindo
nelas quatro campos ou níveis diferentes de aplicação: 1. O nível literal e
histórico; 2. O nível alegórico (hoje prefere-se chamar tipológico) relacionado
à fé em Cristo; 3. O nível moral, ou seja, em relação ao atuar do cristão; 4. O
nível escatológico, que se refere ao cumprimento final no céu. Gregório
escreve:
"As
palavras da Sagrada Escritura são pedras quadrangulares [...]. Em todo
acontecimento do passado que narram [sentido literal], em cada coisa futura que
anunciam [sentido anagógico], em cada dever moral que pregam [sentido moral],
em cada realidade espiritual que proclamam [sentido alegórico ou cristológico],
de cada lado se mantém de pé e são irrepreensíveis[5]”.
Na Idade Média
foi composto um famoso dístico que resumiu esta doutrina: Littera gesta
docet / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. “A letra te ensina
o que aconteceu; o que se deve acreditar a alegoria. / A moral, o que fazer;
onde tender, a anagogia”. A aplicação talvez mais clara deste esquema se tem
com relação à Páscoa. De acordo com a letra ou a história, a Páscoa é o rito
que os judeus cumpriram no Egito; de acordo com a alegoria, referindo-se à fé,
ela indica a imolação de Cristo verdadeiro cordeiro pascal; de acordo com a
moral, indica a transição dos vícios para a virtude, do pecado à santidade; de
acordo com a anagogia ou a escatologia, indica a transição das coisas terrenas
às coisas celestiais, ou também a Páscoa eterna que se celebrará no céu.
Não se trata de
um esquema rígido e mecânico, mas flexível e passível de infinitas variações,
começando com a ordem em que são listados os vários sentidos. Eis um texto de
Gregório no qual se vê a liberdade com que ele mesmo usa o esquema do quádruplo
sentido e como sabe, com ele, tirar várias harmonias da Escritura. Comentando a
imagem de Ezequiel 2, 10, sobre o rolo “escrito dentro e fora” (“intus et
foris”, de acordo com a Vulgata) diz:
"O rolo da
Palavra de Deus está escrito dentro, por meio da alegoria; fora, por meio da
história. Dentro por meio da inteligência espiritual; fora por meio do simples
sentido literal, adequado aos espíritos ainda fracos. Dentro porque promete os
bens invisíveis; fora, porque estabelece a ordem das coisas visíveis com a
retidão dos seus preceitos. Dentro, porque dá a segurança dos bens celestiais;
fora, porque ensina como usar os bens terrenos, ou como escapar das suas
atrações[6]”.
3. Por que
ainda precisamos dos Padres para ler a Bíblia
O que podemos
tirar deste modo assim tão livre e corajoso de colocar-se diante da Palavra de
Deus? Mesmo um admirador da exegese patrística e medieval como o padre de Lubac
admite que não podemos nem retornar a ele, nem imitá-lo mecanicamente no nosso
tempo[7]. Seria uma operação artificial, fadada ao fracasso porque não temos os
pressupostos dos quais eles partiram, o universo espiritual no qual eles se
moviam.
Gregório Magno e
os Padres no geral estavam certos sobre o ponto fundamental que é ler as
Escrituras em referência a Cristo e à Igreja. Antes deles já o faziam, o vimos,
Jesus e os apóstolos. A parte já superada das suas exegeses está no ter
acreditado que podiam aplicar este critério a cada palavra particular da
Bíblia, de modo muitas vezes imaginativo, levando ao simbolismo (por exemplo
aquele dos números) a excessos que hoje nos fazem rir às vezes.
Podemos ter
certeza, observa de Lubac, que, se estivessem vivos hoje, eles seriam os mais
entusiastas na utilização dos recursos críticos colocados à disposição pelo
progresso dos estudos. Orígenes realizou um trabalho hercúleo no seu tempo
deste ponto de vista, obtendo e comparando um com o outro e com o texto
hebraico as várias traduções gregas existentes da Bíblia (a Exapla) e
Agostinho não hesitava em corrigir algumas de suas explicações à luz da nova
versão da Bíblia que Jerônimo estava fazendo[8].
O que então
permanece válido da herança dos Padres neste campo? Talvez aqui, mais do que em
qualquer outro lugar, eles têm uma palavra decisiva a dizer para a Igreja de
hoje que temos de tentar descobrir. O que caracteriza a leitura da Bíblia dos
Padres, além das suas elaboradas alegorias e ousadas aplicações, além da mesma
doutrina dos quatro sentidos da Escritura? De cima para baixo e cada ponto seu
é uma leitura de fé: partia da fé e levava à fé. Todas as suas distinções entre
leitura histórica, alegórica, moral e escatológica se resumem hoje a uma só
distinção: aquela entre uma leitura de fé da Escritura e uma leitura privada de
fé, ou ao menos privada de uma certa qualidade de fé.
Vamos deixar de
lado os estudiosos da Bíblia não crentes que lembrei no início, para os quais
ela é só um livro interessante, mas só humano. A diferença que eu gostaria de
evidenciar é mais sutil e passa entre os mesmos crentes. É a distinção entre
uma leitura pessoal e uma leitura impessoal da palavra de Deus. E tento
explicar o que entendo. Os Padres se aproximavam da palavra de Deus com uma pergunta
constante: o que ela diz, agora e aqui, à Igreja e a mim pessoalmente? Estavam
convencidos de que ela sempre traz novas luzes e novos compromissos.
"Toda a
Escritura, está escrito, é inspirada por Deus " (2 Tm 3, 16). A expressão
que se traduz como “inspirado por Deus”, ou “divinamente inspirada”, na língua
original, é uma palavra única, theopneustos, que contém os dois
vocábulos de Deus (Theos) e de Espírito (Pneuma). Tais palavras
tem dois significados fundamentais. O significado mais conhecido é aquele
passivo, revelado em todas as traduções modernas: a Escritura é “inspirada por
Deus”. Um outro passo do Novo Testamento explica assim este significado:
“Movidos pelo Espírito Santo falam aqueles homens (os profetas) de parte de
Deus” (2 Pd 1, 21). É, em definitiva, a doutrina clássica da inspiração divina
da Escritura, aquela que proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos
que o Espírito Santo é aquele “que falou pelos profetas”.
Da inspiração
bíblica se ilumina, normalmente, quase apenas um efeito: a infalibilidade
bíblica, ou seja, o fato de que a Bíblia não contém nenhum erro (se entendemos
“erro”, corretamente, como ausência de uma verdade possível humanamente, em um
determinado contexto cultural e, portanto, exigível pelo escritor). Mas a inspiração
bíblica fundamenta muito mais do que a simples infalibilidade da Palavra de
Deus (que é uma coisa negativa); fundamenta, positivamente, a sua
inexauribilidade, a sua força e vitalidade divina. A Escritura, dizia Santo
Ambrósio, é theopneustos não só porque é “inspirada por Deus”, mas
também porque é “inspirante Deus”, porque inspira a Deus[9]! Agora inspira a
Deus!
"Com o que
podemos comparar as palavras da Sagrada Escritura - escreve São Gregório – se
não com uma pederneira, na qual se esconde o fogo? Ela é fria quando se segura
com a mão, mas atingida pelo ferro, solta faíscas e gera fogo[10]”.
A Escritura não
contêm só o pensamento de Deus fixado uma vez por todas; contém também o
coração de Deus e a sua vontade viva que lhe indica o que quer de você em um
certo momento, e talvez só de você. A constituição conciliar Dei Verbum
recolhe também esta linha da tradição quando diz que “as sagradas Escrituras
inspiradas por Deus [inspiração passiva!] e redigidas uma vez por todas,
comunicam imutavelmente a palavra do mesmo Deus e fazem ressoar nas palavras
dos profetas e dos Apóstolos a voz do Espírito Santo [inspiração
ativa!][11]". Portanto, não se trata só de ler a palavra de Deus, mas
também de fazer-se ler por esta; não somente de perscrutar as Escrituras, mas
de deixar-se perscrutar pelas Escrituras. Trata-se de não aproximar-se dela
como os bombeiros entravam uma vez entre as chamas, ou seja, com ternos de
amianto que os faziam passar incólumes entre o fogo.
Retomando a
imagem de São Tiago, muitos Padres, entre os quais o nosso Gregório Magno,
comparavam a Escritura a um espelho[12]. O que dizer de alguém que passasse
todo o tempo examinando a forma e o material de que é feito o espelho, a época
em que remonta e tantos outros detalhes, mas não se olhasse nunca no espelho?
Assim faria aquele que passasse o tempo resolvendo todos os problemas críticos
que a Escritura coloca, as fontes, os gêneros literários etc, mas não se
olhasse nunca no espelho, ou melhor, nunca permite que o espelho o olhe e o perscrute
a fundo, até o ponto onde se dividem as juntas das medulas. A coisa mais
importante, sobre a Escritura, não é resolver os seus pontos obscuros, mas
colocar em prática os claros! Ela, diz ainda o nosso Gregório, “se compreende
fazendo-a[13]”.
Uma forte fé na
palavra de Deus não é apenas essencial para a vida espiritual do cristão, mas
também para todas as formas de evangelização. Há duas maneiras de preparar um
sermão ou qualquer proclamação da fé, oral ou escrita. Eu posso, antes de
sentar-me à mesa e escolher eu mesmo a palavra a ser anunciada e o tema a ser
desenvolvido, baseando-me nos meus próprios conhecimentos, nas minhas
preferencias, etc., e depois, uma vez preparado o discurso, colocar-me de
joelhos para pedir apressadamente a Deus que abençoe o que escrevi e dê
eficácia às minhas palavras. É já uma coisa boa, mas não é o caminho profético.
Devemos seguir a ordem inversa: primeiro de joelhos, depois à mesa.
Temos que
começar da certeza da fé que, em todas as circunstâncias, o Senhor Ressuscitado
tem no coração uma palavra sua que deseja fazer chegar ao seu povo. E ele não a
deixa de revelar ao seu ministro, se humildemente e com insistência ele a pede.
No começo se trata de um movimento quase imperceptível do coração: uma pequena
luz que se acende na mente, uma palavra da Bíblia que começa a atrair a atenção
e que ilumina uma situação. Verdadeiramente, "a menor de todas as
sementes", mas depois você percebe que dentro estava tudo; havia um trovão
capaz de derrubar os cedros do Líbano. Depois você se coloca à mesa, abre os
seus livros, consulta as suas anotações, consulta os Padres da Igreja, os
mestres, os poetas... Mas já é outra coisa. Não é mais a Palavra de Deus à
serviço da sua cultura, mas a sua cultura à serviço da Palavra de Deus.
Orígenes
descreve bem o processo que leva a esta descoberta. Antes de encontrar na
Escritura o alimento – dizia – era preciso suportar uma certa “pobreza"
dos sentidos; a alma é cercada pela escuridão em todos os lados, só se encontra
em ruas sem saída. Até que, de repente, depois de trabalhosa pesquisa e oração,
eis que ressoa a voz do Verbo e imediatamente algo se ilumina; aquele que ela
procurava lhe vai ao encontro "pulando sobre as montanhas e saltando pelas
colinas" (cf. Ct 2 , 8), ou seja, abrindo-lhe a mente para receber uma
palavra sua forte e luminosa[14]. Grande é a alegria que acompanha este
momento. Ela fazia dizer a Jeremias: “Quando as tuas palavras vieram a mim, as
devorei com avidez; a tua palavra foi a alegria e o gozo do meu coração” (Jer
15, 16).
Normalmente, a
resposta de Deus vem na forma de uma palavra da Escritura que, no entanto,
naquele momento revela a sua importância extraordinária para a situação e para
o problema a ser tratado, como se tivesse sido escrita especificamente para
ele. Ao fazer isso, ele fala, de fato, "como com palavras de Deus” (cf. 1
Pd 4, 11). Este método vale sempre: para os grandes documentos, como para a
lição que o mestre deu aos seus noviços, para a douta conferência como para a
humilde homilia dominical.
Todos nós
tivemos a experiência do que pode fazer uma única palavra de Deus profundamente
acreditada e vivida primeiramente por aquele que a pronuncia e às vezes até
mesmo sem o seu conhecimento; muitas vezes deve-se constatar que, entre tantas
outras palavras, aquela foi a que tocou o coração e levou mais de um ouvinte ao
confessionário. A experiência humana, as imagens, as histórias vividas, nada de
tudo isso está excluído da pregação evangélica, mas deve ser submetida à
palavra de Deus que deve estar por acima de tudo. Foi o que nos recordou o
Santo Padre nas páginas dedicadas à homilia da “Evangelii gaudium” e é quase
presunçoso de minha parte pensar que eu poderia acrescentar algo.
Gostaria de
terminar esta meditação com um pensamento de gratidão para com os irmãos
judeus, até mesmo como uma felicitação pela próxima visita do Santo Padre a
Israel. Se nos divide deles a interpretação que lhe damos, nos une o comum amor
pelas Escrituras. No museu de Tel Aviv tem uma pintura de Reuben Rubin onde se
veem dois rabinos que apertam, um no peito e outro na bochecha, os rolos da
palavra de Deus, e os beijam como se beija a própria esposa. Com os irmãos
hebreus é possível algo de análogo àquilo que é o ecumenismo espiritual entre
cristãos, ou seja, um colocar juntos, em um clima de diálogo e de estima
recíproca, aquilo que nos une, sem ignorar ou esconder o que nos separa. Não
podemos nos esquecer que recebemos deles as duas coisas mais preciosas que
temos na vida: Jesus e as Escrituras.
Também neste
ano, a Páscoa hebraica cai na mesma semana que a cristã. Desejamos a nós mesmos
e a eles, Feliz Páscoa, Santo e Feliz Pesach.
[Tradução
Thácio Siqueira/ZENIT]
[1] Paul Claudel, L’épée et le miroir: Les sept douleurs de la Sainte
Vierge , Paris: Gallimard, 1939), 74-75.
[2] Orígenes, Comentário
a João, 10, 110 (GCS, Origenes vol. 4, p. 189)
[3] Cf. H. de
Lubac, Histoire et Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène,
Aubier, Paris 1950.
[4] H. de
Lubac, Exegèse Mèdiévale. Les quatre sens de l’Ecriture, Aubier, Paris
1959, vol. I,1, p. 189 ; vol. I,2, p. 537).
[5] Gregorio
Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, IX, 8.
[6] Gregorio
Magno,Homilias sobre Ez. I, IX, 30.
[7] H. de
Lubac, História e Espírito, cit. , pp. 629 ss.
[8] O faz por
exemplo a propósito do significado da palavra “páscoa”, em Enarrationes in
Psalmos 120,6 (CC 40, p. 1791).
[9] Ambrosio, De
Spiritu Sancto, III, 112.
[10] Gregorio
Magno, Homilias sobre Ezequiel, II,10,1.
[11] Dei
Verbum, n. 21.
[12] Gregorio
Magno, Moralia, I, 2, 1 (PL 75, 553D).
[13] Ib. I, 10,31.
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